– É aqui, a prima? –
perguntou o menino, intrigado, quando a carruagem finalmente parou na última
aldeia antes das Terras Verdes. O imperador sorriu-lhe, ao seu pequeno Eric, o
"menino príncipe", como lhe chamavam, dois anos e meio e já tão esperto,
debruçado da janela à procura como se já adivinhasse a resposta.
– Não, a
prima mora mais longe. – Eric confirmou-lhe as suspeitas, e com um sorriso
fez-lhe uma festinha nos cabelos loiros. Não era a primeira vez que ali estavam
mas o seu filho era demasiado pequeno para se lembrar. Bem, algo devia lembrar,
da maneira interessada que inspeccionava aquela pacata aldeia de rudes
camponeses, mas devia ser tudo uma névoa na memória de um menino daquela idade.
Eric abriu
a porta e saiu da carruagem, e aproveitou para esticar as pernas e o tronco. Os
trinta anos já pesavam. Muito pouco, ainda só o suficiente.
O resto
da viagem seria feita a cavalo, pela floresta, por atalhos que já ninguém
conhecia. Ainda era uma boa distância, mas a carruagem e a escolta tinham
andado a excelente ritmo e chegariam antes do anoitecer. O céu, carregado, não
ameaçava chuva. Talvez nevasse, se o frio persistisse. Afinal, era a época do
ano para nevar.
O
capitão da escolta aproximava-se, trazendo pela rédea o cavalo malhado que
levaria o imperador às Terras Verdes. O resto dos homens já se dirigia aos
últimos afazeres antes do descanso. O imperador só regressaria daí por alguns
dias, teriam repouso de sobra naquela aldeia de nenhures.
– Se me
permite… – disse o capitão, olhando em volta para se certificar de que todos os
homens já se tinham afastado. Havia uma familiaridade diferente na sua voz, uma
familiaridade apenas permitida a um companheiro de armas que tinha lutado lado
a lado do imperador quando ainda era duvidoso que este viesse a conquistar o
trono. – Não me agrada a ideia de que vá sozinho às Terras Verdes. Bem sei, a
sua prima é nossa aliada, e eu também não acredito nessas histórias de bruxaria,
isso é para tolos supersticiosos. Mas senhor Eric, por uma questão de
segurança… – e o homem pousou os olhos no menino, que lhe sorria. O capitão
sorriu de volta. – Por uma questão de segurança, eu posso ir consigo.
Eric cruzou
os braços, contendo um suspiro, e baixou os olhos para a verdura orvalhada e
gélida que estalava sob o peso das suas botas. Os seus homens de confiança
estavam mais do que habituados às extravagâncias por que era conhecido. Muitos
até já lhe adivinhavam as intenções. Mas o tempo das extravagâncias estava
também a esgotar-se. Logo depois da guerra, quando tudo era novo e caótico, até
as excentricidades tinham feito sentido, mas há dez anos que Eric era o
soberano e sabia o que todos esperavam dele. Uma rainha, uma corte, uma mão
cheia de príncipes e princesas, herdeiros da coroa. Não um jovem desorientado
que partia sozinho com um filho bastardo a visitar uma prima em terras
proscritas.
– Lars…
– argumentou, olhando o companheiro de armas nos olhos castanhos. Um homem da
sua idade, da sua geração. Mais do que um súbdito, um camarada. – Conheces a
minha prima. Estiveste lá, naquela madrugada, quando o exército dela apareceu e
juntos mudámos o rumo da guerra. A Hildegaard não é uma ameaça. É como parente
que a vou visitar para o Solstício, para conversar e descansar, e comer e beber
como todas as famílias fazem nesta altura por todo o reino.
– Sem
dúvida. – o capitão abanou a cabeça, embaraçado. – Sei que o senhor e a sua
prima estiveram afastados durante muitos anos, sei que pretende reaproximar-se,
como é natural. Na verdade, senhor Eric… – cada vez menos à vontade, o homem
fingiu que ajeitava o cinto de armas, os olhos baixos, a voz mais baixa ainda.
– Na verdade, sou eu quem gostaria de visitar as Terras Verdes. Não por mim. É
o meu pai. O meu pai é velho, senhor Eric, e já não lhe resta muito tempo. Algo
o apoquenta cada vez mais. Há muitos anos, o meu tio desapareceu. O irmão mais
novo do meu pai. Foi no tempo da sua mãe, quando ela vivia no castelo. Eu era
pequeno, devia ter a idade do seu filho ou menos ainda. Não me lembro do meu
tio. Mas ele casou com uma das senhoras do séquito da sua mãe. Uma senhora
daqui, das Terras Verdes, da terra da rainha Elena. Quando aquilo aconteceu… O
que quer que tenha acontecido que as aias das Terras Verdes foram expulsas da
vila real. Bem, o meu tio acompanhou a esposa. O meu pai diz que era intenção
dele ir morar com ela nas Terras Verdes. Mas o meu tio daria notícias. A
verdade é que nunca deu, e o meu pai… Apoquenta-o morrer sem saber o que lhe
aconteceu. Quer saber o que é feito do irmão, se ainda vive. Porque o meu pai
tem o pressentimento de que o meu tio Reid nunca aqui chegou, que é por isso
que nunca deu notícias. Que está morto, algures. Digo-lhe, senhor Eric, o meu
pai nunca se angustiou tanto como agora, e quando soube que eu vinha para estas
partes… E eu gostaria de dar notícias ao meu pai. De ir às Terras Verdes e
perguntar pelo meu tio e pela mulher dele.
– Reid,
dizes que é o seu nome? – respondeu Eric, com um aceno e um estreitar de
lábios. E olhou melhor as feições do capitão Lars como se quisesse memorizar
aqueles olhos escuros e aquele tom de castanho dos cabelos, quase negro, e a
forma do queixo e do nariz. – Perguntarei por ele. De certeza que se o teu tio
está nas Terras Verdes não deve ser difícil encontrá-lo. Perguntarei e
trar-te-ei notícias. – assegurou, e desviou da testa o cabelo húmido de
orvalho. – Mas sabes como é o meu acordo com as Terras Verdes. A minha prima
não admite estranhos, e sabes porquê. Lamento, mas o convite só se estende a
mim.
– Eu
compreendo. – garantiu Lars, erguendo a mão para indicar que não precisava de
mais explicações.
– Trarei
notícias. – Eric prometeu, convicto, e tomou as rédeas do cavalo. Fazia-se
tarde, os dias eram cada vez mais curtos. Não podia perder tempo.
O
capitão afastou-se, inclinando a cabeça numa ligeira vénia, muito mais tranquilo
depois daquela promessa. Eric perguntava-se, às vezes, por que razão eram os
filhos tão próximos dos seus pais que a angústia de um era a angústia do outro.
Um pai às portas da morte e nunca tinha visto aquele homem tão desorientado. Jamais
compreenderia. Aquelas eram angústias de quem tinha tido um pai, de quem sabia
o que era ter tido um tio. Eric não sabia. Nem ia às Terras Verdes em busca de
descobrir o que jamais saberia, mas de algo mais, algo que conhecia. O amor
pela sua prima, o amor com que sorriu ao seu filho. Mas aquele amor por um pai,
desconhecia. Primeiro, era preciso ter tido um pai. O rei não tinha sido pai
nenhum. Agora Eric sabia, no amor pelo seu filho.
O
menino sorria-lhe, impaciente. Eric afastou a sua longa capa com o braço, e
pegou-lhe ao colo e montou-o no cavalo. Sem o largar, montou também, e
partiram.
Continua...
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