Já publicado:
Solstício I
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
Solstício VI
Solstício VII
Solstício VIII
Continua...
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
Solstício VI
Solstício VII
Solstício VIII
– Não quer visitar o
castelo? – Melissen perguntou ao imperador, surpreendida, enquanto o
acompanhava ao pátio. Pela conversa dos dois primos, tinha deveras julgado que
ele vinha reclamar a casa de família.
– Penso
que o castelo está em muito boas mãos. – Eric respondeu, e tentou não deixar transparecer
a pressa em sair dali para fora. Felizmente, a sua prima já se aproximava.
– Vamos embora? – deduziu Hildegaard, e despediu-se
de Melissen: – Um bom Solstício para ti! Não vais passá-lo aqui sozinha, pois
não?
– Não. –
Melissen tranquilizou-a, sorrindo. – Estou à espera da minha família.
Furtivamente,
Eric levantou os olhos para a mulher que ainda há pouco quase se desfazia em
lágrimas. Ainda bem que não estava sozinha. Merecia algo de bom na sua vida
depois de tanta tragédia. Algo de bom, uma família. E Eric voltou a baixar os
olhos, uma sombra de amarga inveja a endurecê-los. Era sempre assim, por aquela
altura do ano. Todos tinham uma família, todos tinham quem os esperasse. Todos,
excepto uma outra, a sua antiga serva, tão infeliz, aquela que só no seu abrigo
encontrara o primeiro lar que tinha conhecido. Pobre Reena, como estaria ela,
tão longe? Sim, ela agora tinha uma família. Ambos a tinham, agora. Mas não era
essa a família que lhes faltava, que sempre lhes faltaria. A primeira família.
Aquela que nem sabiam o que era. Tal como ele, Reena também não sabia. Mas dois
órfãos não são dois irmãos.
Sem
pensar, Eric subiu para a carroça e tomou as rédeas.
Hildegaard
subiu atrás dele, e sentou o menino ao colo, e não disse nada enquanto o seu
primo conduzia pela encosta por onde tinham vindo. Também não desejava parecer
uma dessas mulheres, daquelas mandonas e caprichosas que queriam sempre tudo à
sua maneira. Nunca o tinha sido, na verdade, mas talvez sempre o tivesse
parecido. Hildegaard questionava-se, muitas vezes, se não seria essa a razão da
falta de um amor na sua vida. Mas agora era tarde, tarde para tudo. Tarde até
para se questionar.
–
Descobriste o que vieste saber? – perguntou ao seu primo, e Eric acenou
afirmativamente e inclinou a cabeça na direcção do pequenino.
–
Descobri, e não é bom. Conto-te mais tarde.
Ainda há
pouco era meio-dia, e já o entardecer se vinha anunciar. Os pássaros diurnos
chilreavam, sobressaltados, na urgência de regressarem aos ninhos. Uma coruja
madrugadora sobrevoou a carroça e pousou num ramo altivo, anunciando a chegada
do seu reinado. Quando a carroça se aproximou da vila, no vale entre montanhas,
a noite já tinha caído.
Hildegaard
tinha reparado no silêncio do seu primo, um silêncio pesado que podia ter a ver
com a visita dessa tarde. Mas havia algo mais naquele silêncio. Uma melancolia
que era só dele, que já lhe tinha visto muitas vezes, que o tragava de volta
para o passado. Por sua vontade, não o teria levado àquele castelo.
– O que
estão eles a fazer? – Eric indagou, subitamente desperto, quando se cruzaram
com os primeiros aldeões que atarefados decoravam as árvores perenes em volta
de suas casas. Era o que pareciam fazer, enfeitando-lhes as pernadas mais fortes
com lamparinas acesas, adornando-lhes os troncos e ramos com fitas de trigo
entrelaçado, guardadas desde as colheitas, douradas e resplandecentes ao brilho
das pequenas lanternas. Mais à frente, outros aldeões faziam o mesmo, e a
floresta iluminava-se, árvores e árvores até a vista alcançar, como um céu
cheio de estrelas.
– É o
Solstício. – explicou Hildegaard. Nem lhe tinha passado pela cabeça que o seu
primo se admirasse. Mas claro que se admirava, porque não sabia. – As luzes
simbolizam o Sol. As lamparinas são acesas na esperança de que o Sol regresse
de madrugada, apesar da noite tão longa.
– Claro
que o Sol vai regressar! – Eric exclamou, perplexo, e Hildegaard respondeu com
um risinho. – Oh, não me digas que vós aqui ainda adorais o Sol!…
E Eric
voltou-se para ela, de sobrolho franzido. Não era o choque de um homem
religioso perante a idolatria. Era a estupefacção de um homem instruído perante
o que devia considerar um disparate.
– Não te
preocupes, primo, já ninguém aqui adora o Sol. Nem os deuses das árvores. – e
como ele reagisse ainda mais abismado, Hildegaard riu de novo e abanou a
cabeça. – Não, também não adoramos os deuses das árvores! Mas há muito tempo,
talvez milénios, os povos desta terra adoravam os deuses das árvores, e os
deuses da água, e os deuses da terra. Todos os deuses eram adorados, tantos
quantos havia na natureza. Acreditava-se que esses deuses tinham de ser celebrados
para recompensarem as gentes com boas colheitas. As fitas de trigo ainda restam
desses tempos, ofertas aos deuses das colheitas. E antes de falares demais,
lembra-te que a tua igreja também reza por boas colheitas. Bem, aqui damos as
boas-vindas ao Sol, e esta noite é a celebração do seu regresso. O Solstício, a
noite mais longa do ano. Talvez os antigos tivessem medo de que o Sol não
regressasse. Que a noite, e o inverno e o frio, não se fossem embora. O que
estamos a celebrar aqui, primo, é já a esperança na próxima primavera. Esta é a
noite mais longa, mas amanhã o dia vence a noite, e as noites serão cada vez
mais curtas. É isso que celebramos.
Com um sorriso
divertido, Eric aceitou a explicação. Os monges, no mosteiro onde fora educado,
saltariam de raiva com aqueles ritos pagãos, mas Eric não se importava. As
lamparinas, pequenas chamas dançando em volta das árvores, brilhavam mais intensamente
no ar frio e denso. De todas as chaminés cheirava a lenha nos fogões e a boa
comida nos tachos. A noite, assim iluminada, acolhia os viajantes tardios que pelo
caminho se cruzavam com a carroça e se dirigiam a casa. Viajantes como eles, e
subitamente Eric também desejou chegar a casa. A lareira aguardava-os, e a mesa
posta. O calor dos sorrisos da sua prima e do seu filho esperavam-no.
Da
janela do castelo, quando chegaram, a vista era ainda mais magnífica. Eric
tomou o menino nos braços para lhe mostrar, de tão alto, o céu todo estrelado,
a floresta cheia de estrelas. Aquilo era algo que nunca tinham contemplado, e o
rapazinho olhava e sorria. Eric já achava que valeria todas as penas terem
vindo às Terras Verdes só para deliciarem os olhos naquele momento de encanto.
– Vê,
como é bonita a terra da prima!
–
Bonita! – exclamou o pequeno Eric, e apontou. Ao fundo do caminho, um grupo de
homens e mulheres, à luz de archotes, subia na direcção do castelo.
– Quem
são aqueles? – Eric perguntou à sua prima, mas uma súbita azáfama já tinha
tomado o salão. Todos os criados e criadas, Etha e a própria Hildegaard, se
apressavam a encher bandejas e pequenos cestos com a comida que estava na mesa.
– São os
cantores. Já vais perceber. Traz alguma coisa, e vem! – Hildegaard ordenou, e
atrapalhado Eric voltou-se para a mesa e pegou num bolo de noz… Não. De certeza
que iam dar a comida àquela gente que chegava e não levariam o delicioso bolo
de noz! Rapidamente, pegou noutra bandeja.
Bem,
parecia que teria de participar, e que só lhe restava seguir as pessoas da casa
até à porta. Lá fora, o grupo de homens e mulheres, desafiando o frio com mantos
e capuzes, parou no pátio. Quando a música começou, o pequeno Eric,
entusiasmado, já tinha tomado um lugar à frente de todos.
Tambores
e gaitas-de-foles abriram caminho para as vozes femininas que logo se ergueram:
Ó da
casa, não temais, a noite passará!
O sol
regressará, ó da casa, não temais!
Atrás
das mulheres, segurando os archotes, o coro dos homens pontuou:
Ó da
casa, não temais!
A
noite é longa e escura, mas o sol regressará!
Com a
nossa luz viemos, a madrugada chegará!
Ó da
casa, não temais!
A
nossa luz trouxemos, na noite escura e fria!
Em
vigília nós cantamos, e o sol regressará!
Ó da
casa, não temais!
Nas
trevas nós cantamos, e a noite se alumia!
A
nossa luz trouxemos e o sol regressará!
Ó da
casa, não temais!
O rufar
de tambores e pandeiretas colheu a última nota da gaita-de-foles. As pessoas do
castelo aplaudiram e os cantores ofertaram os anfitriões com ramos de abeto
perene. Hildegaard foi presenteada com uma grande coroa de bonito azevinho e
hera viçosa. Em troca, os cantores aceitaram os cestos e bandejas de comida. Dali,
seguiriam a cantar de casa em casa, de porta em porta, como faziam todos os
anos no Solstício.
Alegremente,
despediram-se, e as pessoas do castelo enfeitaram as portas e o salão com os
verdes ramos. E mais lamparinas. Aquela gente devia mesmo ter medo que o sol
não regressasse, Eric troçou, mas guardou a troça no seu sorriso e nada disse.
Afinal, era uma tradição engraçada e generosa.
Tanta
comida começava a recordá-lo de que tinha fome, mas Hildegaard já fazia sinal
de que eram horas de voltarem para a mesa. O muito que ainda restava era para
ser comido, e na noite mais longa do ano havia muito tempo para comer.
Continua...
Sem comentários :
Enviar um comentário
Todos os comentários são bem vindos: