segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO V

Já publicado:
Solstício II
Solstício III
Solstício IV





O sol do meio-dia quase fazia esquecer o frio quando a pequena carroça não seguia à sombra das árvores perenes que o inverno não despira. Às rédeas, Hildegaard conhecia os insuspeitos trilhos entre elas como a palma das suas mãos. Eric ainda tinha pensado em oferecer-se para conduzir, porque era como se fazia em todo o reino, porque seria o esperado de um homem e de um nobre. Apenas um instante a ideia lhe cruzou o espírito, e logo a abandonou. Hildegaard não gostaria da oferta, senhora dos seus domínios, senhora da sua independência. Talvez não o suficiente para o considerar um insulto, mas Eric não arriscaria sequer meio-insulto. Não lhe importava, verdadeiramente, que por uma vez na vida uma mulher o guiasse por caminhos desconhecidos. Uma vez, ou muitas vezes, era tudo uma questão de aparências aos olhos do reino, e o reino não estava ali.
Descontraído, estendeu um braço em torno dos ombros do menino sentado entre eles e apreciou a paisagem de espessas ramagens e largos troncos, e de penedos negros e cobertos de musgo das íngremes vertentes. Nas Terras Verdes, algumas folhagens, ao longe, tomavam para si a cor azul, como extensos mantos aveludados de mar viçoso. Não havia cor assim em todo o reino nem nos reinos em redor.
Empoleirado no topo da colina, já se avistava o castelo, e os seus dois torreões assimétricos, um deles baixo e largo, o outro alto e esguio e encimado por uma coroa de ameias. Mais de perto, Eric deu razão à sua prima. Não era um castelo em ruínas, não ainda, mas quase, como se até as pedras daquelas terras também soubessem dominar a maestria do disfarce e se cobrissem a si próprias de falsa decadência. À distância, ninguém diria que aquelas paredes eram habitadas.
O castelo nunca teria precisado de fortificações, tendo a vantagem das alturas e a montanha às suas costas. O muro e o arco do portão serviam mais de adorno do que outra coisa. Abertas de par em par, as velhas portas deixaram entrar a carroça e Hildegaard puxou as rédeas no que teria sido dantes o pátio orgulhoso de uma casa real. Agora as ervas bravias já mal deixavam ver o empedrado do chão. À entrada, os brasões do Unicórnio e do Leão tinham sido gravados de cada lado do portão, não há muitas décadas. Elena era filha de uma mulher do Unicórnio e de um homem do Leão. Eric mal tinha noção de que tal mulher e tal homem eram os seus avós. Estranhos, nomes no livro da sua genealogia. Em vão Hildegaard se preocupava que aquela visita lhe causasse más memórias. Quais memórias? Não havia memórias.
– Liss! – Hildegaard chamou, ao descer da carroça, mas a mulher já aparecia da pequena porta lateral, ao fundo, destinada aos criados e à cozinha. As grandes portadas principais tinham ar de não ser abertas há muito tempo. Desde o funeral da rainha Elena, provavelmente. – Liss, este é o meu primo. – Hildegaard apresentava-o, e sorria, e talvez se preocupasse tanto que decidia recorrer ao gracejo: – Veio reclamar o castelo, ao que parece! Primo, vieste reclamar o castelo?…
Por um instante espantado, enquanto erguia o seu filho da carroça e o punha no chão, Eric franziu o sobrolho. Nem lhe tinha passado pela cabeça. Nem tencionava responder, até olhar a mulher. A expressão séria, inquieta, no rosto daquela mulher, em toda a rigidez do seu corpo tenso, ao vê-lo ali. Eric sabia que não era bem-vindo nas Terras Verdes, mas nem isso explicaria tal perturbação. Afinal, ela conhecia ao que vinham. Hildegaard tinha enviado um mensageiro antes deles. Aquela era de facto a esposa do tal Reid, de quem podia saber as notícias que prometera ao capitão Lars. Para a pôr à vontade, o melhor era entrar na brincadeira. Se era brincadeira?…
– Bem, parece que sou o herdeiro. – sorriu também à sua prima, e estudou mais atentamente a mulher à porta. Sim, ela tinha idade para ser tia do capitão Lars. Algures entre os cinquenta e os sessenta anos, ainda se lhe notavam os traços da beleza de rapariga, antes de envelhecer, antes que o corpo lhe tivesse tomado as formas flácidas e largas da cintura que apertava num avental. Da touca branca, como a usavam quase todas as mulheres daquelas terras, ainda escapavam alguns fios de cabelo loiro, quase grisalho. Mas os olhos, duas pedras azuis e vivas, não tinham perdido nenhum do seu brilho. Apesar da mágoa. Eric reconheceria a mágoa daquele olhar onde quer que a visse. Oh, sim, havia ali um mistério, e nada bom. Hildegaard não gracejava sem razão, e gracejaria também: – Não conheço assim tão bem as vossas leis, mas no resto do reino…
– És o herdeiro e o castelo é teu por direito. – Hildegaard esclareceu, e uma súbita e justificada solenidade acompanhou-lhe as palavras. – Na morte de todos os herdeiros, o castelo pertencia à tua mãe. Na morte dela, pertence-te a ti. O castelo é teu, primo.
Eric olhou a torre mais próxima de alto a baixo. Sem disfarçar a surpresa, falou ao seu filho, que curioso já examinava todo aquele novo território:
– Pequenino, parece que temos um castelo! Mas nós já temos um castelo, não é? Pois é! De onde saiu agora este castelo?… – e sorrindo mais, Eric virou-se para a sua prima. – Sabes, Hildegaard, acho que só me queres dar este castelo para não teres de me hospedar em tua casa da próxima vez.
Hildegaard queria permanecer séria. Era questão para seriedade, mas a gargalhada traiu-a.
– Podes muito bem ter razão! – provocou-o. Sem nenhuma convicção no que dizia. – Esta é a Melissen. – estendeu a mão para a mulher que em silêncio os observava. Que só agora decidia quebrar o seu silêncio:
– Bem-vindo, senhor Eric. Entre. Está frio, e tenho o lume aceso. – convidou, mas grave como pedra voltou as costas e em passadas rápidas deixou que a seguissem. Eric reparou, quando ela falou, que torcia as mãos nervosas uma na outra como se tivesse alguma coisa a temer. Eric reconheceria aquele medo onde quer que o visse. Já o tinha visto tantas vezes.
A cozinha era espaçosa e arrumada, a disposição de toda a mobília e utensílios como era comum aos castelos da sua época. O fogão crepitava, acolhedor, e sobre a grande mesa revelava-se que Melissen tinha andado ocupada. Também ali se celebrava o Solstício e havia comida com fartura. Eric não quis perguntar para quem era aquela comida toda. Não tinha dito a sua prima que Melissen vivia sozinha? Mas não era isso que o trazia. Por cortesia, aceitou a bebida quente que a mulher lhes ofereceu.
– Vim a pedido de um dos meus homens. – explicou, pouco interessado em perturbar a habitante da casa por mais tempo do que o necessário. Por alguma razão perturbava-a, por alguma razão relacionada com um passado de que também conhecia alguma coisa. O passado da sua mãe, o passado que o incluía, que nunca mais desejava revisitar. – Deves conhecê-lo, se casaste com o tio dele. Um homem da minha idade, chamado Lars.
– Lembro-me. Era um menino de colo da última vez que o vi. – Melissen falou, e voltou-se para o imperador, os seus olhos vivos e azuis como duas pedras incandescentes a fitá-lo. – Um menino da sua idade, da última vez que o vi a si. Nunca esperei vê-lo de novo, confesso. – e Melissen apertou as mãos, grossas e enrugadas, e a voz estremeceu-lhe. – Diziam que estava doente… Folgo em vê-lo, aqui nas nossas terras, o homem em que se tornou.
– Ele era parecido com o meu priminho? – Hildegaard interrompeu, astuta, os olhos verdes comunicando mil mensagens. Que Eric não queria ser recordado, que o melhor era nem o recordar, que era tempo de festa e alegria, não de mágoas, que por sua vontade nem o teria trazido ali.
– Sim, eram parecidos. – Melissen respondeu, e esforçou-se por sorrir ao rapazinho. Eric reparou nisso também, e que não era verdade, não eram nada parecidos. Que o seu filho era encantador, ao contrário da criança que ele próprio tinha sido e do homem que continuava a ser, e que Melissen mentia porque não queria ser indelicada. – Sim, contarei o que aconteceu ao meu marido. Mas não à frente do menino.
Hildegaard compreendeu que não era bom o que havia a contar. Com um aceno de concordância, chamou o seu pequeno primo:
– Anda comigo, vamos ver o que é que a Melissen tem plantado na horta.
Tomado por tão simples engodo, o menino correu até ela. Hildegaard deu-lhe a mão, olhou para trás uma última vez, e juntos saíram.
Melissen respirou fundo, como se tentando aliviar um peso que lhe oprimia o peito, mas quando voltou a olhar o imperador era ainda mais carregado o seu semblante. Com um gesto, convidou-o a sentar-se.
Eric ocupou a cadeira à frente dela, junto à lareira. Não tinha julgado que fosse tão grave o que levara esse Reid da família. Porque agora sabia que era grave, era só uma questão de ouvir.
– Foi há tanto tempo. – Melissen começou, e os olhos brilharam-lhe de lágrimas. – Éramos tão jovens. Ele era um soldado ao serviço do rei, seu pai. Eu era uma aia ao serviço da sua mãe. E ele era tão valente, tão gentil. E eu era bonita, nessa altura. Oh, não tão bonita como a sua mãe! Nenhuma rapariga era bonita como a sua mãe! Mas eu era bonita, e ele olhou para mim. E o que aconteceu, meu senhor, foi o que acontece a todos os jovens daquela idade. Apaixonámo-nos.




Continua...


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