Já publicado:
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
Continua...
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
A fogueira
Melissen não tinha ido de
sua vontade. Só a pedido de uma parente mais velha, futura aia da rainha,
acompanhou o séquito de mulheres que com Elena partiram das Terras Verdes para
com ela morarem no castelo do rei. Mas Melissen não ia de vontade e imaginava
que ia ser muito infeliz. Que vida seria a sua, longe da sua terra, naquele
reino lá fora onde ninguém compreendia os seus costumes, as suas tradições, as
suas crenças? Melissen não tinha o dom, o dom era cada vez mais raro, mas era
devota à religião antiga e oprimia-lhe o coração de jovem rapariga ter de
fingir que não o era. No castelo real não passava de uma criada. Não era como
nas Terras Verdes, onde a sua família era estimada e respeitada como se
pertencessem também eles ao grande clã do Unicórnio, casa de reis e rainhas.
Destronados, mas não menos nobres por isso. Melissen não era orgulhosa, nem se
julgava nenhuma fidalga, mas ofendia-a a sua nova posição na vila real. O que
era uma criada, na vila real? Absolutamente nada. E ainda assim, Melissen não
tinha de que se queixar. O seu estatuto de criada da rainha mantinha-a bastante
a salvo do que acontecia a outras serviçais da sua idade, vistas, por nobres e homens
de armas do rei, como presa fácil para certos apetites. De Melissen, na sua
posição privilegiada, nunca ninguém se atreveu a aproximar.
Apenas
um se aproximou, e com outras intenções. Reid, soldado e guarda do castelo, encantara-se
por ela. A princípio, certamente, porque era bonita. E Melissen era bonita, com
os seus cabelos loiros e sedosos e os seus olhos azuis e brilhantes, e a
frescura da sua juventude. A princípio, era o que Melissen achava dele também,
um rapaz vistoso, alto e risonho, que respeitosamente a cortejava, como era
natural que cortejasse.
Depressa
se tornou muito mais que isso. A afeição aumentou entre os dois, e juntos passeavam
de mãos dadas, e faziam planos para o futuro. E ambos foram aconselhados, pelas
respectivas famílias, um contra o outro. Que Melissen seria uma tonta se
aceitasse por marido um homem de tão rudes origens, que Reid não podia estar a
considerar casar-se com uma mulher que vinha da terra das bruxas, que só podia sê-lo
ela própria se o tinha enfeitiçado tão cegamente. Enfeitiçados os dois,
fizeram-se surdos aos conselhos e ouviram apenas a felicidade que os chamava do
futuro que sonhavam juntos. Casaram-se, e tomaram para eles um aposento longe
dos outros criados, na ala mais afastada do castelo, onde raramente alguém os incomodava.
Um pequeno quartinho que lhes bastava por enquanto, um curioso aposento que em
tempos mais recuados devia ter sido uma masmorra, com uma única e estreita
janela, quase no tecto, a denunciar que teria havido nela grades outrora.
Melissen e Reid não se importaram. Precisavam daquele refúgio. Ninguém olhava
com bons olhos aquela união, nem as aias da rainha nem as pessoas do castelo,
como se não fosse natural, como se aquelas duas gentes nunca se pudessem misturar.
Bem se via o resultado, pelo casamento da rainha e do rei, que se odiavam! Era
quase esse ódio, como se fosse contagioso, que Melissen e Reid sentiam sobre
eles desde que se tinham tornado marido e mulher. Era algo de que nem falavam,
de que não precisavam de falar, tão odiada que era a sua união. Antes dois
jovens tão risonhos, a tristeza tomou-os a ambos, mas nunca a tristeza os virou
um contra o outro. Pelo contrário, uniu-os mais, e era maior o amor e a ternura
com que sozinhos naquele quarto afastado se refugiavam de um mundo que não os compreendia.
Melissen nada via de rude e ignorante ao seu marido, Reid nada achava de
maléfico nas crenças que conhecia da sua esposa. Amavam-se, e aceitavam-se, e
eram felizes juntos. Teriam sido felizes mais tempo, mas o destino não quis
assim.
Por
razões que Melissen nunca percebeu, que as próprias aias nunca perceberam, a
rainha Elena converteu-se drasticamente à Igreja e expulsou-as do castelo. Melissen
quase sentia o chão ruir debaixo dos seus pés, toda a felicidade com o homem
que amava ameaçada por tal aversão que a rainha agora infligia às suas gentes.
Que eram bruxas, adoradoras do diabo, malvadas feiticeiras que deviam ser
corridas de volta para as suas terras. Melissen nunca o ouviu da rainha. Elena
já nem lhe falava, já nem a olhava nos olhos. Ouviu-o das mulheres de quem a
rainha se rodeava agora, mulheres devotas e zelosas, solteiras e viúvas,
algumas delas monjas.
As aias
de Elena partiram, e queriam levá-la com elas, que aquele sítio já não era
seguro. Melissen já não queria ir. Era ali a sua vida agora, onde tinha um lar
com o seu marido. Não podia abandoná-lo e regressar. A sua família era ele, não
o que deixara para trás.
Reid não
acreditava em bruxarias nenhumas. Tudo aquilo o apanhava de surpresa. Estavam
todos loucos, de repente?! Não, claro que a sua esposa não se iria dali, claro
que não abriria mão dela! Eram marido e mulher, uma união sagrada, para a vida
inteira. Como podia ser Melissen uma bruxa, se casara com ele na igreja, se com
ele entrava na missa, se juntos se ajoelhavam defronte do altar? Tinham todos
perdido a cabeça?
As aias
partiram, e Melissen ficou. Mas tudo mudou nesse dia. Reid nem queria
acreditar, mas agora as pessoas da vila evitavam-nos. A ele também,
evitavam-no. Ouvia-os murmurar nas suas costas, que casado com uma bruxa devia
ser bruxo também, que através dele os malefícios da mulher com quem dormia encontravam
caminho para afligir as pessoas tementes a Deus. Que, se bem lembrassem, Reid
nunca tinha sido assim tão piedoso, que a sua alma já estaria também condenada.
Durante
meses, valentemente, Reid ignorou-os. Continuou com a sua vida, convencido de
que a verdade acabaria por vencer as superstições, que a seu tempo todos veriam
que nada havia de estranho na sua esposa e esqueceriam aquelas tolices. Mas
piorou. Tudo piorou, de dia para dia. Melissen já não se atrevia a sair do
castelo. Passear juntos de mãos dadas, lá fora, tinha-se tornado uma memória distante.
As pessoas da vila benziam-se quando os viam. Até já se benziam quando viam somente
a Reid. O soldado nele reconheceu o inimigo, e que estavam cercados.
O aviso
chegou-lhe por um camarada de armas de uma vila próxima. Um homem como Reid, um
dos raros a quem a Igreja não prendia nas garras. E o aviso era alarmante. Que
os padres das redondezas incitavam as pessoas contra a sua esposa, a bruxa que
ficara para trás, que a queriam apanhar. Corriam perigo, se ficassem. Deviam
partir já. Por tudo quanto era mais sagrado, que partissem imediatamente!
Reid
compreendeu a gravidade do que se preparava e não partilhou as suas intenções
com mais ninguém. Despediu-se do amigo, pediu-lhe que informasse a sua família
de que ia morar nas Terras Verdes com a sua esposa, que lhes mandaria notícias
assim que pudesse.
Logo de
seguida, voltou ao castelo.
– Temos
de ir! – comunicou a Melissen. – Não podemos ficar, minha querida, corremos
risco de vida. Arruma algumas coisas, só o que for preciso, deixa tudo o resto.
Partimos agora, antes que seja tarde.
Nunca
Melissen tinha visto aqueles olhos castanhos tão cheios de receio. Também ela
tinha medo. Também ela tinha pensado partir, muitas vezes, mas nunca lho
confessara temendo ter de partir sozinha. Temendo perdê-lo. Mas agora sabia,
sem qualquer dúvida, que era tão amada que Reid abandonava tudo por ela. A sua
terra, as suas gentes, o seu rei, o seu futuro. Com os olhos a transbordar de
lágrimas, Melissen correu para os seus braços e apertou-se-lhe no peito. Tinha
pensado, jovem que era, que o amor era aquela primeira paixão que tão depressa
os encantara. Mas agora sabia que o amor era sacrifício. Que envelheceriam
juntos, longe dali, que era esse o verdadeiro amor.
Desgraçadamente,
ingenuamente, partiram, mas algo lhes escapou do tamanho do perigo que
enfrentavam. Tão ingenuamente que Melissen ainda usava as roupas típicas das
Terras Verdes, o seu toucado branco e bordado, uma prenda das suas avós.
Seguiam discretamente, numa carroça vulgar, mas à medida que se afastavam da
vila real este ou aquele camponês pousava neles os olhos. Foram vistos, foram
seguidos. Por não julgarem precisar de disfarce, foram reconhecidos e
descobertos.
Naquele
entardecer, entre eles e o caminho, saiu-lhes à frente uma horda de camponeses.
Homens, mulheres, padres. A carroça não passaria, o caminho estava barrado.
– É a
bruxa que queremos! – um homem gritou a Reid, brandindo uma forquilha. – Vai-te
embora e deixa a bruxa!
– A
bruxa, a bruxa! – exigiu uma mulher, raivosa e desdentada, empunhando uma segadeira.
– Em
nome de Deus, – disse o padre que os liderava, e ergueu bem alto um crucifixo –
ordenamos-te que te afastes dessa meretriz do demónio ou morrerás como ela!
Mais à
frente, não longe da estrada, outros camponeses atarefados carregavam lenha.
Uma grande fogueira, com uma alta estaca no meio, preparava-se para ser ateada.
Melissen soltou um suspiro de agonia e pensou que ia desmaiar.
Reid
cerrou os dentes, o rosto severo como rocha, os olhos selvagens como os do soldado
antes da batalha, e já tinha combatido em muitas. Não eram só foices e paus que
os camponeses traziam. Alguns tinham facas e espadas, e Reid desembainhou a
dele.
– Foge!
– sussurrou a Melissen, e saltou da carroça.
Sem
pegar nas suas trouxas, sem levar nada com ela, Melissen saltou também. Juntos,
desataram a correr. Os camponeses, irados, gritaram a sua fúria e correram
atrás deles. Reid tomou a mão da sua esposa e enveredou pela ravina abaixo,
onde havia pedregulhos e troncos que poderiam servir de esconderijo naquele
terreno de montanha. Correram e correram, perseguidos pela turba enfurecida,
que não os largava, que não dava tréguas. Sozinho, Reid correria mais tempo e
mais depressa, mas foi Melissen quem parou. Exausta, ofegante, ajoelhou-se por
terra debruçada sobre a barriga. Não conseguiria dar outro passo. Reid teve de
parar também, os cabelos negros, longos pelos ombros, escorrendo suor. Longe de
estar cansado, aproveitou para respirar. Por momentos, apenas.
– Vamos!
Temos de ir! – encorajou a sua esposa, e ajudou-a a pôr-se de pé. Os camponeses
mais jovens, rapazes e raparigas, já tinham ganho muito terreno. – Temos de ir
já, minha querida! Corre, não pares!
Melissen
queria correr. Depois daquela pausa, conseguiu arranjar forças para correr mais
um pouco. O sol punha-se no horizonte, e Reid corria na direcção contrária,
para leste, onde a noite caía primeiro. Melissen percebeu. Bastaria encontrarem
uma sombra, um refúgio, e talvez conseguissem esperar que a noite os ocultasse.
Mas não havia refúgio e agora a ravina subia, cada vez mais íngreme.
Reid
olhou para baixo, ponderou as dezenas de camponeses enraivecidos que os
perseguiam. Melissen, esgotada, mal se conseguia arrastar colina acima, a touca
perdida durante a corrida, a cara arranhada dos ramos e raízes a que se agarrava
para subir mais depressa. As faces rosadas molhadas de lágrimas e trémulas de
medo. Reid ponderou, e ajoelhou-se ao pé dela.
–
Esconde-te. – pediu-lhe. – Procura um abrigo, esconde-te. Eu vou descer para os
atrasar.
– Não,
são demasiados! – Melissen implorou, agarrando-lhe o braço. Os gritos dos
perseguidores aproximavam-se, o tempo esgotava-se. Reid olhou-a nos olhos,
sereno, composto:
– Volto
num instante. Vou só ganhar tempo. Vai tu à frente, e esconde-te. – insistiu, e
firmemente apertou-lhe a mão na dele, e Melissen compreendeu. Talvez não o tornasse
a ver. Talvez fosse a última vez que olhava nos olhos que amava, castanhos e
ternos, risonhos como os lembrava, como tinham sido, à luz vermelha do pôr-do-sol…
Não, não era o pôr-do-sol. A fogueira! Tinham acendido a fogueira! – Vai,
esconde-te!
Reid
levantou-se, de espada em punho, e começou a descer. Os camponeses vociferaram,
praguejaram, recuaram de medo. Melissen aproveitou para subir, agora que
estavam distraídos. Subiu, e subiu, e quando olhou para baixo os camponeses
tinham rodeado o seu marido, mas de espada numa mão e de punhal na outra Reid
mantinha-os ao largo. Todos tinham medo de o enfrentar. Com um rasgo de
esperança, Melissen subiu mais, e encontrou um grande pedregulho, meio tombado
pelo seu próprio peso, com uma larga cavidade atrás. De gatas, forçou-se até lá
e encolheu-se nesse buraco onde mais nada caberia senão o seu corpo maleável de
jovem rapariga.
Lá em
baixo, gritos. O padre gritava, os camponeses gritavam, Reid gritava com eles.
E depois, outros gritos. Gritos de dor, quando a espada do seu marido os atingia.
Melissen tomou coragem para espreitar, agora que a sombra já obscurecia o
pedregulho. No meio deles, Reid lutava. Contra todos, lutava. Alguns já caídos
por terra, ensanguentados. A fogueira ardia, as chamas cada vez mais altas,
cada vez mais aterradoras, e Melissen tapou a cabeça com as mãos e não quis ver
mais nada.
Por fim,
a voz de Reid deixou de se ouvir. Urros de vitória, era o que pareciam, tinham-no
calado. O padre rezava em voz alta, as mulheres rezavam mais alto ainda. Escondida
no buraco, Melissen nem se mexia, nem conseguia respirar, tanto era o medo que
a encontrassem. E Reid, porque não ouvia Reid? Era a ela que queriam. Porque
não o deixavam em paz? Oh, que gritos eram aqueles? Melissen não teve coragem
de levantar a cabeça e olhar. Já era noite, só a fogueira iluminava a montanha
de vermelho. Então, cheirou. O que nunca tinha cheirado antes, o que jamais
queria voltar a cheirar. Carne queimada. Nenhuma outra carne cheirava assim.
Melissen
vomitou, e conseguiu vomitar em silêncio. Agora já não pensava em Reid, agora
era apenas terror o que lhe esvaziava o estômago. Quanto tempo durou aquele frenesim
de selvagens ululantes lá em baixo, não saberia dizer. Durante toda a noite,
não se conseguiu mexer de onde estava.
Oh, sim,
vieram procurá-la. Se por milagre, se por ter as roupas tão sujas que se
confundiam com a terra, não a encontraram. Melissen esperou, e esperou. Quando
já não se ouvia ninguém, quando só os pássaros cantavam outra vez, só a medo se
atreveu a levantar a cabeça.
Tinham-se
ido embora, tinham perdido o interesse, reclamada que estava a sua vítima. Ao
longe, na fogueira, um cadáver negro ainda fumegava. Melissen só olhou de
relance e não quis olhar melhor. Rastejou dali para fora, procurou caminho
inóspito entre árvores e penedos. Procurou outro abrigo, e escondeu-se.
Durante
dias, escondeu-se. Durante noites e noites, andou e andou. Andou tanto e para
tão longe que já ninguém reconheceria nela qualquer vestígio de quem era. Uma
mulher, julgando-a mendiga, em farrapos, deu-lhe roupas para mudar. Melissen
fingiu-se surda e muda para que o seu sotaque das Terras Verdes não a traísse.
E caminhou, e caminhou. E nunca mais olhou para trás.
Continua...
Sem comentários :
Enviar um comentário
Todos os comentários são bem vindos: