terça-feira, 13 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO VI

Já publicado:
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V




A fogueira



Melissen não tinha ido de sua vontade. Só a pedido de uma parente mais velha, futura aia da rainha, acompanhou o séquito de mulheres que com Elena partiram das Terras Verdes para com ela morarem no castelo do rei. Mas Melissen não ia de vontade e imaginava que ia ser muito infeliz. Que vida seria a sua, longe da sua terra, naquele reino lá fora onde ninguém compreendia os seus costumes, as suas tradições, as suas crenças? Melissen não tinha o dom, o dom era cada vez mais raro, mas era devota à religião antiga e oprimia-lhe o coração de jovem rapariga ter de fingir que não o era. No castelo real não passava de uma criada. Não era como nas Terras Verdes, onde a sua família era estimada e respeitada como se pertencessem também eles ao grande clã do Unicórnio, casa de reis e rainhas. Destronados, mas não menos nobres por isso. Melissen não era orgulhosa, nem se julgava nenhuma fidalga, mas ofendia-a a sua nova posição na vila real. O que era uma criada, na vila real? Absolutamente nada. E ainda assim, Melissen não tinha de que se queixar. O seu estatuto de criada da rainha mantinha-a bastante a salvo do que acontecia a outras serviçais da sua idade, vistas, por nobres e homens de armas do rei, como presa fácil para certos apetites. De Melissen, na sua posição privilegiada, nunca ninguém se atreveu a aproximar.
Apenas um se aproximou, e com outras intenções. Reid, soldado e guarda do castelo, encantara-se por ela. A princípio, certamente, porque era bonita. E Melissen era bonita, com os seus cabelos loiros e sedosos e os seus olhos azuis e brilhantes, e a frescura da sua juventude. A princípio, era o que Melissen achava dele também, um rapaz vistoso, alto e risonho, que respeitosamente a cortejava, como era natural que cortejasse.
Depressa se tornou muito mais que isso. A afeição aumentou entre os dois, e juntos passeavam de mãos dadas, e faziam planos para o futuro. E ambos foram aconselhados, pelas respectivas famílias, um contra o outro. Que Melissen seria uma tonta se aceitasse por marido um homem de tão rudes origens, que Reid não podia estar a considerar casar-se com uma mulher que vinha da terra das bruxas, que só podia sê-lo ela própria se o tinha enfeitiçado tão cegamente. Enfeitiçados os dois, fizeram-se surdos aos conselhos e ouviram apenas a felicidade que os chamava do futuro que sonhavam juntos. Casaram-se, e tomaram para eles um aposento longe dos outros criados, na ala mais afastada do castelo, onde raramente alguém os incomodava. Um pequeno quartinho que lhes bastava por enquanto, um curioso aposento que em tempos mais recuados devia ter sido uma masmorra, com uma única e estreita janela, quase no tecto, a denunciar que teria havido nela grades outrora. Melissen e Reid não se importaram. Precisavam daquele refúgio. Ninguém olhava com bons olhos aquela união, nem as aias da rainha nem as pessoas do castelo, como se não fosse natural, como se aquelas duas gentes nunca se pudessem misturar. Bem se via o resultado, pelo casamento da rainha e do rei, que se odiavam! Era quase esse ódio, como se fosse contagioso, que Melissen e Reid sentiam sobre eles desde que se tinham tornado marido e mulher. Era algo de que nem falavam, de que não precisavam de falar, tão odiada que era a sua união. Antes dois jovens tão risonhos, a tristeza tomou-os a ambos, mas nunca a tristeza os virou um contra o outro. Pelo contrário, uniu-os mais, e era maior o amor e a ternura com que sozinhos naquele quarto afastado se refugiavam de um mundo que não os compreendia. Melissen nada via de rude e ignorante ao seu marido, Reid nada achava de maléfico nas crenças que conhecia da sua esposa. Amavam-se, e aceitavam-se, e eram felizes juntos. Teriam sido felizes mais tempo, mas o destino não quis assim.
Por razões que Melissen nunca percebeu, que as próprias aias nunca perceberam, a rainha Elena converteu-se drasticamente à Igreja e expulsou-as do castelo. Melissen quase sentia o chão ruir debaixo dos seus pés, toda a felicidade com o homem que amava ameaçada por tal aversão que a rainha agora infligia às suas gentes. Que eram bruxas, adoradoras do diabo, malvadas feiticeiras que deviam ser corridas de volta para as suas terras. Melissen nunca o ouviu da rainha. Elena já nem lhe falava, já nem a olhava nos olhos. Ouviu-o das mulheres de quem a rainha se rodeava agora, mulheres devotas e zelosas, solteiras e viúvas, algumas delas monjas.
As aias de Elena partiram, e queriam levá-la com elas, que aquele sítio já não era seguro. Melissen já não queria ir. Era ali a sua vida agora, onde tinha um lar com o seu marido. Não podia abandoná-lo e regressar. A sua família era ele, não o que deixara para trás.
Reid não acreditava em bruxarias nenhumas. Tudo aquilo o apanhava de surpresa. Estavam todos loucos, de repente?! Não, claro que a sua esposa não se iria dali, claro que não abriria mão dela! Eram marido e mulher, uma união sagrada, para a vida inteira. Como podia ser Melissen uma bruxa, se casara com ele na igreja, se com ele entrava na missa, se juntos se ajoelhavam defronte do altar? Tinham todos perdido a cabeça?
As aias partiram, e Melissen ficou. Mas tudo mudou nesse dia. Reid nem queria acreditar, mas agora as pessoas da vila evitavam-nos. A ele também, evitavam-no. Ouvia-os murmurar nas suas costas, que casado com uma bruxa devia ser bruxo também, que através dele os malefícios da mulher com quem dormia encontravam caminho para afligir as pessoas tementes a Deus. Que, se bem lembrassem, Reid nunca tinha sido assim tão piedoso, que a sua alma já estaria também condenada.
Durante meses, valentemente, Reid ignorou-os. Continuou com a sua vida, convencido de que a verdade acabaria por vencer as superstições, que a seu tempo todos veriam que nada havia de estranho na sua esposa e esqueceriam aquelas tolices. Mas piorou. Tudo piorou, de dia para dia. Melissen já não se atrevia a sair do castelo. Passear juntos de mãos dadas, lá fora, tinha-se tornado uma memória distante. As pessoas da vila benziam-se quando os viam. Até já se benziam quando viam somente a Reid. O soldado nele reconheceu o inimigo, e que estavam cercados.
O aviso chegou-lhe por um camarada de armas de uma vila próxima. Um homem como Reid, um dos raros a quem a Igreja não prendia nas garras. E o aviso era alarmante. Que os padres das redondezas incitavam as pessoas contra a sua esposa, a bruxa que ficara para trás, que a queriam apanhar. Corriam perigo, se ficassem. Deviam partir já. Por tudo quanto era mais sagrado, que partissem imediatamente!
Reid compreendeu a gravidade do que se preparava e não partilhou as suas intenções com mais ninguém. Despediu-se do amigo, pediu-lhe que informasse a sua família de que ia morar nas Terras Verdes com a sua esposa, que lhes mandaria notícias assim que pudesse.
Logo de seguida, voltou ao castelo.
– Temos de ir! – comunicou a Melissen. – Não podemos ficar, minha querida, corremos risco de vida. Arruma algumas coisas, só o que for preciso, deixa tudo o resto. Partimos agora, antes que seja tarde.
Nunca Melissen tinha visto aqueles olhos castanhos tão cheios de receio. Também ela tinha medo. Também ela tinha pensado partir, muitas vezes, mas nunca lho confessara temendo ter de partir sozinha. Temendo perdê-lo. Mas agora sabia, sem qualquer dúvida, que era tão amada que Reid abandonava tudo por ela. A sua terra, as suas gentes, o seu rei, o seu futuro. Com os olhos a transbordar de lágrimas, Melissen correu para os seus braços e apertou-se-lhe no peito. Tinha pensado, jovem que era, que o amor era aquela primeira paixão que tão depressa os encantara. Mas agora sabia que o amor era sacrifício. Que envelheceriam juntos, longe dali, que era esse o verdadeiro amor.
Desgraçadamente, ingenuamente, partiram, mas algo lhes escapou do tamanho do perigo que enfrentavam. Tão ingenuamente que Melissen ainda usava as roupas típicas das Terras Verdes, o seu toucado branco e bordado, uma prenda das suas avós. Seguiam discretamente, numa carroça vulgar, mas à medida que se afastavam da vila real este ou aquele camponês pousava neles os olhos. Foram vistos, foram seguidos. Por não julgarem precisar de disfarce, foram reconhecidos e descobertos.
Naquele entardecer, entre eles e o caminho, saiu-lhes à frente uma horda de camponeses. Homens, mulheres, padres. A carroça não passaria, o caminho estava barrado.
– É a bruxa que queremos! – um homem gritou a Reid, brandindo uma forquilha. – Vai-te embora e deixa a bruxa!
– A bruxa, a bruxa! – exigiu uma mulher, raivosa e desdentada, empunhando uma segadeira.
– Em nome de Deus, – disse o padre que os liderava, e ergueu bem alto um crucifixo – ordenamos-te que te afastes dessa meretriz do demónio ou morrerás como ela!
Mais à frente, não longe da estrada, outros camponeses atarefados carregavam lenha. Uma grande fogueira, com uma alta estaca no meio, preparava-se para ser ateada. Melissen soltou um suspiro de agonia e pensou que ia desmaiar.
Reid cerrou os dentes, o rosto severo como rocha, os olhos selvagens como os do soldado antes da batalha, e já tinha combatido em muitas. Não eram só foices e paus que os camponeses traziam. Alguns tinham facas e espadas, e Reid desembainhou a dele.
– Foge! – sussurrou a Melissen, e saltou da carroça.
Sem pegar nas suas trouxas, sem levar nada com ela, Melissen saltou também. Juntos, desataram a correr. Os camponeses, irados, gritaram a sua fúria e correram atrás deles. Reid tomou a mão da sua esposa e enveredou pela ravina abaixo, onde havia pedregulhos e troncos que poderiam servir de esconderijo naquele terreno de montanha. Correram e correram, perseguidos pela turba enfurecida, que não os largava, que não dava tréguas. Sozinho, Reid correria mais tempo e mais depressa, mas foi Melissen quem parou. Exausta, ofegante, ajoelhou-se por terra debruçada sobre a barriga. Não conseguiria dar outro passo. Reid teve de parar também, os cabelos negros, longos pelos ombros, escorrendo suor. Longe de estar cansado, aproveitou para respirar. Por momentos, apenas.
– Vamos! Temos de ir! – encorajou a sua esposa, e ajudou-a a pôr-se de pé. Os camponeses mais jovens, rapazes e raparigas, já tinham ganho muito terreno. – Temos de ir já, minha querida! Corre, não pares!
Melissen queria correr. Depois daquela pausa, conseguiu arranjar forças para correr mais um pouco. O sol punha-se no horizonte, e Reid corria na direcção contrária, para leste, onde a noite caía primeiro. Melissen percebeu. Bastaria encontrarem uma sombra, um refúgio, e talvez conseguissem esperar que a noite os ocultasse. Mas não havia refúgio e agora a ravina subia, cada vez mais íngreme.
Reid olhou para baixo, ponderou as dezenas de camponeses enraivecidos que os perseguiam. Melissen, esgotada, mal se conseguia arrastar colina acima, a touca perdida durante a corrida, a cara arranhada dos ramos e raízes a que se agarrava para subir mais depressa. As faces rosadas molhadas de lágrimas e trémulas de medo. Reid ponderou, e ajoelhou-se ao pé dela.
– Esconde-te. – pediu-lhe. – Procura um abrigo, esconde-te. Eu vou descer para os atrasar.
– Não, são demasiados! – Melissen implorou, agarrando-lhe o braço. Os gritos dos perseguidores aproximavam-se, o tempo esgotava-se. Reid olhou-a nos olhos, sereno, composto:
– Volto num instante. Vou só ganhar tempo. Vai tu à frente, e esconde-te. – insistiu, e firmemente apertou-lhe a mão na dele, e Melissen compreendeu. Talvez não o tornasse a ver. Talvez fosse a última vez que olhava nos olhos que amava, castanhos e ternos, risonhos como os lembrava, como tinham sido, à luz vermelha do pôr-do-sol… Não, não era o pôr-do-sol. A fogueira! Tinham acendido a fogueira! – Vai, esconde-te!
Reid levantou-se, de espada em punho, e começou a descer. Os camponeses vociferaram, praguejaram, recuaram de medo. Melissen aproveitou para subir, agora que estavam distraídos. Subiu, e subiu, e quando olhou para baixo os camponeses tinham rodeado o seu marido, mas de espada numa mão e de punhal na outra Reid mantinha-os ao largo. Todos tinham medo de o enfrentar. Com um rasgo de esperança, Melissen subiu mais, e encontrou um grande pedregulho, meio tombado pelo seu próprio peso, com uma larga cavidade atrás. De gatas, forçou-se até lá e encolheu-se nesse buraco onde mais nada caberia senão o seu corpo maleável de jovem rapariga.
Lá em baixo, gritos. O padre gritava, os camponeses gritavam, Reid gritava com eles. E depois, outros gritos. Gritos de dor, quando a espada do seu marido os atingia. Melissen tomou coragem para espreitar, agora que a sombra já obscurecia o pedregulho. No meio deles, Reid lutava. Contra todos, lutava. Alguns já caídos por terra, ensanguentados. A fogueira ardia, as chamas cada vez mais altas, cada vez mais aterradoras, e Melissen tapou a cabeça com as mãos e não quis ver mais nada.
Por fim, a voz de Reid deixou de se ouvir. Urros de vitória, era o que pareciam, tinham-no calado. O padre rezava em voz alta, as mulheres rezavam mais alto ainda. Escondida no buraco, Melissen nem se mexia, nem conseguia respirar, tanto era o medo que a encontrassem. E Reid, porque não ouvia Reid? Era a ela que queriam. Porque não o deixavam em paz? Oh, que gritos eram aqueles? Melissen não teve coragem de levantar a cabeça e olhar. Já era noite, só a fogueira iluminava a montanha de vermelho. Então, cheirou. O que nunca tinha cheirado antes, o que jamais queria voltar a cheirar. Carne queimada. Nenhuma outra carne cheirava assim.
Melissen vomitou, e conseguiu vomitar em silêncio. Agora já não pensava em Reid, agora era apenas terror o que lhe esvaziava o estômago. Quanto tempo durou aquele frenesim de selvagens ululantes lá em baixo, não saberia dizer. Durante toda a noite, não se conseguiu mexer de onde estava.
Oh, sim, vieram procurá-la. Se por milagre, se por ter as roupas tão sujas que se confundiam com a terra, não a encontraram. Melissen esperou, e esperou. Quando já não se ouvia ninguém, quando só os pássaros cantavam outra vez, só a medo se atreveu a levantar a cabeça.
Tinham-se ido embora, tinham perdido o interesse, reclamada que estava a sua vítima. Ao longe, na fogueira, um cadáver negro ainda fumegava. Melissen só olhou de relance e não quis olhar melhor. Rastejou dali para fora, procurou caminho inóspito entre árvores e penedos. Procurou outro abrigo, e escondeu-se.
Durante dias, escondeu-se. Durante noites e noites, andou e andou. Andou tanto e para tão longe que já ninguém reconheceria nela qualquer vestígio de quem era. Uma mulher, julgando-a mendiga, em farrapos, deu-lhe roupas para mudar. Melissen fingiu-se surda e muda para que o seu sotaque das Terras Verdes não a traísse. E caminhou, e caminhou. E nunca mais olhou para trás.




Continua...

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