quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO VII

Já publicado:
Solstício II
Solstício III
Solstício IV
Solstício V
Solstício VI




– Quando cheguei a casa jurei que não voltaria a sair das Terras Verdes. E nunca mais saí. – Melissen concluiu, estremecendo, as mãos nervosas apertadas uma na outra sobre o colo, os olhos fixos na claridade do dia que entrava pela janela.
Eric escutava em silêncio, sem um movimento, sem um pestanejar. Tinha esperado a todo o momento que durante o seu relato Melissen desatasse em pranto. Mas tinha sido há muito tempo. Demasiado tempo para que restassem lágrimas. Calma e composta, Melissen já tinha aceitado aquela perda, aquele terror, aquelas memórias medonhas que só no segredo do seu íntimo a perseguiam. Os olhos longínquos, feridos, pareciam rever algo que tinha acontecido a outra pessoa, noutro tempo, como se já nem tivesse sido com ela. Só agora aqueles olhos regressavam, para os voltar para o imperador, para de sobrolho franzido continuar:
– Diga-lhes, aos que perguntam pelo Reid, que foi assassinado pela sua própria gente, na sua própria terra. Diga-lhes que morreu para me salvar. Que morreu… Não sei como morreu. Fui cobarde, desviei os olhos. Tenho esperança de que o tenham matado antes. Antes do que vi, na fogueira. Mas fui cobarde e não consegui olhar. Devia ter sido eu! Devia ter sido eu… – um soluço silenciou-a, e uma única lágrima sulcou-lhe o rosto abalado. Mas Melissen respirou fundo. – Eu ainda não sabia que estava grávida. Ele nunca chegou a saber que ia ter um filho. O filho que salvou também, ao salvar-me a mim. Um rapaz, forte e bonito como o pai, o meu filho.
Eric atreveu-se a endireitar as costas, medindo no rosto que o fitava se era motivo para um sorriso, e para aliviar o peso da conversa e perguntar por esse tal rapaz…
– O meu filho morreu como o pai dele, a lutar. – Melissen calou-o antes que pudesse abrir a boca. – Foi à guerra, com o exército da Hildegaard. Valente como o pai, sempre foi um soldado. Como tantos outros dos nossos jovens, não voltou a casa. Oh, mas não julgue que o culpo a si por causa da guerra! O meu filho morreu para nos defender, porque estávamos em perigo. Pergunte-me, e dir-lhe-ei que teria preferido que ele não tivesse sido valente. Que pudesse ter ficado nos braços da sua mãe, seguro e protegido. Mas por mais cega que uma mãe possa ser, uma mãe também sabe quando o seu menino se faz homem. O meu filho cresceu e fez-se homem, e seria o primeiro a partir para nos defender. Tenho sorte, apesar de tudo, porque me deixou uma neta. Tenho uma nora, e uma neta. Uma menina linda, valente como o pai, como o avô. Tão valente que quer aprender a lutar, como a Hildegaard. Tudo farei para lhe tirar essas ideias da cabeça, mas não é fácil, com um exemplo como o da sua prima. Não, não quero a minha netinha a lutar como um homem!
– No que depender de mim, não haverá outra guerra em que lutar. – Eric conseguiu prometer, quase numa tentativa de se desculpar. Nada o teria preparado para o que tinha ouvido nessa tarde. O destino daquela mulher tão subitamente se entrelaçava no dele. Por culpa da sua mãe, ela perdera o homem que amava. Por sua culpa, ou quase, perdera também o filho na guerra. Eric só se admirava de não ver ódio naqueles olhos magoados, mas Melissen era justa. Teria todas as razões para não o ser, mas sabia admitir que o homem à sua frente tinha sido também jogado, como um peão, num tabuleiro previamente preparado onde quase tudo estava decidido. – Tem sido o meu propósito fazer a paz e manter a paz. Foi por isso que lutei, foi por isso que a Hildegaard lutou. Para que em tempo de paz coisas como a que te aconteceu não se tornem a passar num reino de caos.
Melissen ergueu os olhos para os dele, e tão acesos os ergueu que foi como se lhe chamasse tolo.
– Sei que pediu a nossa Hildegaard em casamento. Sei que pensa torná-la rainha, que o reino a aceitará, que pode enfrentar essa gente. – acusou, e nos olhos brilhava-lhe o medo que do seu íntimo a perseguia. – Se a ama, se a ama de verdade, esqueça que ela existe. A única paz de que precisamos é a do nosso refúgio. Não julgue que conseguirá derrotá-los. O ódio não se derrota com a espada. Pense no que me aconteceu, no que aconteceu ao Reid. Não queira levar daqui a nossa Hildegaard porque vai colocá-la em perigo, e a si também, aos dois!
Por um momento, Eric pesou as palavras antes de as deixar escapar da língua. Não, tola, eu e a minha prima somos feitos de um metal mais forte, temperado noutra fornalha. Não somos como tu e esse outro tolo, tão cegos de amor que essa cegueira vos destruiu. Eric pensou, mas não disse. Fingiu-se interessado na caneca da bebida quente que lhe tinha sido oferecida e levou-a aos lábios. Já estava fria, e bebeu-a de um só trago como se fosse aguardente. Como teria preferido que fosse aguardente. O que a mulher dizia não era tolice nenhuma. Sim, o reino tinha mudado, mas as pessoas não. Ainda não havia tempo suficiente. Tempo era tudo o que Eric precisava, mas esgotava-se.
– Compreendo-te, e compreendo os teus receios. – admitiu, e deixou que a altivez lhe tornasse o semblante em pedra. – Não penses que não conheço a minha gente, e que não conheço a Igreja. Conheço-a, vivi dentro dela. E a Igreja conhece-me e não me quer por inimigo. Seria errado subestimar-me, Melissen. Tu, melhor do que ninguém, devias sabê-lo. Muitos me subestimaram antes.
Atingida, Melissen chegou-se para trás e baixou os olhos. Do que ele acusava, era culpada também. Quando todos julgavam que aquele príncipe enfermo não sobreviveria, também não tinha sido ela a velar-lhe o berço. Também ela o tinha abandonado, atarefada que andava a amar e ser feliz. Mas Eric não esquecia, nem perdoava, e era verdade o que diziam dele. O homem que ali estava, o homem que tinha vindo visitar a sua prima para o Solstício, não era o soberano implacável que conquistara para si um império. Tinha-o deixado para trás, antes de entrar, como um disfarce que se podia vestir e despir. Melissen tê-lo-ia temido, se não fosse a mão de Hildegaard que o trazia. Hildegaard tinha o dom, e nenhum disfarce iludia o dom.




Continua...

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