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Solstício VI
Continua...
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– Quando cheguei a casa
jurei que não voltaria a sair das Terras Verdes. E nunca mais saí. – Melissen
concluiu, estremecendo, as mãos nervosas apertadas uma na outra sobre o colo,
os olhos fixos na claridade do dia que entrava pela janela.
Eric
escutava em silêncio, sem um movimento, sem um pestanejar. Tinha esperado a todo
o momento que durante o seu relato Melissen desatasse em pranto. Mas tinha sido
há muito tempo. Demasiado tempo para que restassem lágrimas. Calma e composta,
Melissen já tinha aceitado aquela perda, aquele terror, aquelas memórias medonhas
que só no segredo do seu íntimo a perseguiam. Os olhos longínquos, feridos, pareciam
rever algo que tinha acontecido a outra pessoa, noutro tempo, como se já nem
tivesse sido com ela. Só agora aqueles olhos regressavam, para os voltar para o
imperador, para de sobrolho franzido continuar:
–
Diga-lhes, aos que perguntam pelo Reid, que foi assassinado pela sua própria
gente, na sua própria terra. Diga-lhes que morreu para me salvar. Que morreu…
Não sei como morreu. Fui cobarde, desviei os olhos. Tenho esperança de que o
tenham matado antes. Antes do que vi, na fogueira. Mas fui cobarde e não
consegui olhar. Devia ter sido eu! Devia ter sido eu… – um soluço silenciou-a,
e uma única lágrima sulcou-lhe o rosto abalado. Mas Melissen respirou fundo. –
Eu ainda não sabia que estava grávida. Ele nunca chegou a saber que ia ter um
filho. O filho que salvou também, ao salvar-me a mim. Um rapaz, forte e bonito
como o pai, o meu filho.
Eric
atreveu-se a endireitar as costas, medindo no rosto que o fitava se era motivo
para um sorriso, e para aliviar o peso da conversa e perguntar por esse tal
rapaz…
– O meu
filho morreu como o pai dele, a lutar. – Melissen calou-o antes que pudesse abrir
a boca. – Foi à guerra, com o exército da Hildegaard. Valente como o pai,
sempre foi um soldado. Como tantos outros dos nossos jovens, não voltou a casa.
Oh, mas não julgue que o culpo a si por causa da guerra! O meu filho morreu
para nos defender, porque estávamos em perigo. Pergunte-me, e dir-lhe-ei que
teria preferido que ele não tivesse sido valente. Que pudesse ter ficado nos
braços da sua mãe, seguro e protegido. Mas por mais cega que uma mãe possa ser,
uma mãe também sabe quando o seu menino se faz homem. O meu filho cresceu e
fez-se homem, e seria o primeiro a partir para nos defender. Tenho sorte,
apesar de tudo, porque me deixou uma neta. Tenho uma nora, e uma neta. Uma
menina linda, valente como o pai, como o avô. Tão valente que quer aprender a
lutar, como a Hildegaard. Tudo farei para lhe tirar essas ideias da cabeça, mas
não é fácil, com um exemplo como o da sua prima. Não, não quero a minha netinha
a lutar como um homem!
– No que
depender de mim, não haverá outra guerra em que lutar. – Eric conseguiu prometer,
quase numa tentativa de se desculpar. Nada o teria preparado para o que tinha
ouvido nessa tarde. O destino daquela mulher tão subitamente se entrelaçava no
dele. Por culpa da sua mãe, ela perdera o homem que amava. Por sua culpa, ou
quase, perdera também o filho na guerra. Eric só se admirava de não ver ódio naqueles
olhos magoados, mas Melissen era justa. Teria todas as razões para não o ser,
mas sabia admitir que o homem à sua frente tinha sido também jogado, como um
peão, num tabuleiro previamente preparado onde quase tudo estava decidido. –
Tem sido o meu propósito fazer a paz e manter a paz. Foi por isso que lutei,
foi por isso que a Hildegaard lutou. Para que em tempo de paz coisas como a que
te aconteceu não se tornem a passar num reino de caos.
Melissen
ergueu os olhos para os dele, e tão acesos os ergueu que foi como se lhe
chamasse tolo.
– Sei
que pediu a nossa Hildegaard em casamento. Sei que pensa torná-la rainha, que o
reino a aceitará, que pode enfrentar essa gente. – acusou, e nos olhos
brilhava-lhe o medo que do seu íntimo a perseguia. – Se a ama, se a ama de
verdade, esqueça que ela existe. A única paz de que precisamos é a do nosso
refúgio. Não julgue que conseguirá derrotá-los. O ódio não se derrota com a
espada. Pense no que me aconteceu, no que aconteceu ao Reid. Não queira levar
daqui a nossa Hildegaard porque vai colocá-la em perigo, e a si também, aos
dois!
Por um momento,
Eric pesou as palavras antes de as deixar escapar da língua. Não, tola, eu e
a minha prima somos feitos de um metal mais forte, temperado noutra fornalha.
Não somos como tu e esse outro tolo, tão cegos de amor que essa cegueira vos
destruiu. Eric pensou, mas não disse. Fingiu-se interessado na caneca da
bebida quente que lhe tinha sido oferecida e levou-a aos lábios. Já estava
fria, e bebeu-a de um só trago como se fosse aguardente. Como teria preferido
que fosse aguardente. O que a mulher dizia não era tolice nenhuma. Sim, o reino
tinha mudado, mas as pessoas não. Ainda não havia tempo suficiente. Tempo era
tudo o que Eric precisava, mas esgotava-se.
–
Compreendo-te, e compreendo os teus receios. – admitiu, e deixou que a altivez
lhe tornasse o semblante em pedra. – Não penses que não conheço a minha gente,
e que não conheço a Igreja. Conheço-a, vivi dentro dela. E a Igreja conhece-me
e não me quer por inimigo. Seria errado subestimar-me, Melissen. Tu, melhor do
que ninguém, devias sabê-lo. Muitos me subestimaram antes.
Atingida,
Melissen chegou-se para trás e baixou os olhos. Do que ele acusava, era culpada
também. Quando todos julgavam que aquele príncipe enfermo não sobreviveria,
também não tinha sido ela a velar-lhe o berço. Também ela o tinha abandonado, atarefada
que andava a amar e ser feliz. Mas Eric não esquecia, nem perdoava, e era
verdade o que diziam dele. O homem que ali estava, o homem que tinha vindo
visitar a sua prima para o Solstício, não era o soberano implacável que
conquistara para si um império. Tinha-o deixado para trás, antes de entrar,
como um disfarce que se podia vestir e despir. Melissen tê-lo-ia temido, se não
fosse a mão de Hildegaard que o trazia. Hildegaard tinha o dom, e nenhum
disfarce iludia o dom.
Continua...
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