terça-feira, 20 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO XIII

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Desta vez os archotes iam acesos quando pouco mais tarde subiram a colina. Eric continuava algo espantado, ao seguir aquela gente em fila para outro sítio que não a clareira entre as árvores. Mas ao chegar ao topo da vereda, compreendeu. A leste da colina erguia-se a grande montanha, a majestosa barreira de onde o sol brilharia primeiro.
No chão pedregoso ardia uma única fogueira, quase insignificante agora que o céu de límpido inverno já começava a ofuscá-la. Dispostos em semicírculo, os sacerdotes e sacerdotisas cantavam, virados para leste. Toda a gente esperava, alguns cantando também, o primeiro raiar da aurora.
Bem, o cerimonial era interessante, e o seu filho parecia entretido. Eric olhou o menino que lhe dava a mão, envolto na capa com capuz que Hildegaard lhe vestira, quase como os sacerdotes da terra. Animado e curioso, como de costume, o rapazinho observava. Demasiado pequeno para compreender, mas o nascer do sol era sempre bonito de se ver. Podia dizer-lhe, quando regressassem…
– Amigos! – a sacerdotisa da véspera ergueu a voz, voltada para a assembleia que a escutava. – A noite morre e o sol renasce! Hoje, o dia vence a noite!

Hoje, o dia vence a noite!

– Já não tarda a primavera, agora que começa o inverno. Agradecemos o inverno, que nos traz a primavera. Agradecemos as trevas, que nos trazem a luz. Eis que nasce a luz e morre a noite, e a roda do ano completa-se. Grande Mãe, agradecemos a luz!

Grande Mãe, agradecemos a luz!

– Nela esperamos, nela agradecemos, a Ela celebramos. Como a noite, morremos; como o Sol, renascemos!

Como o Sol, renascemos!

– Hoje a vida recomeça, nova e antiga, desde o princípio dos tempos, até ao fim dos tempos. Agradecemos a luz que nos guia, abrimos o coração à luz. Como o Sol renascemos, e a vida começa de novo!

E a vida começa de novo!

Atrás da sacerdotisa, o céu clareava. Com a madrugada, a neblina chegava por cima da montanha, raiada de azul e cor-de-rosa. O chilrear dos pássaros regressava, a floresta desperta enchia-se de som e cor.

– Bendita sejas, Grande Mãe! Abençoa-nos, Grande Mãe!

Abençoa-nos, Grande Mãe!

E como se soubesse o instante, a sacerdotisa voltou-se para o Sol, e o Sol raiou para todos. Cânticos alegres soavam agora, e alguns rapazes e raparigas deram as mãos e dançaram em roda da fogueira.
E ali estava, o Sol. E ali estava, a manhã. Eric sorriu e apertou a mão do seu filho, mas era triste aquele sorriso. E ali estava, o fim da visita. E o começo da vida que não desejava.
Um ancião, um homem gordo e quase careca, a quem já custava caminhar, aproximava-se de Hildegaard com um grande sorriso nos lábios.
– Tem o que pedi, Mestre Symm? – Hildegaard recebeu-o, entusiasmada.
– Claro que tenho, Menina. Exactamente o que pediu! – o homem tirou algo de dentro do casaco e Eric percebeu o que era. Um pequeno arco, uma perfeita réplica de madeira e corda, feita por um verdadeiro mestre. Só a ponta da seta o denunciava como brinquedo. – Veja, Menina, a minha mulher coseu-lhe uma almofada de pano e lã, para o rapazinho não se aleijar. Que me diz?
– Está maravilhoso, Mestre Symm! – Hildegaard exclamou, encantada, e inclinou-se para o seu pequeno primo, que de olhos brilhantes já cobiçava o presente. – E tu, que dizes? Gostas da prenda? É um arco e uma flecha, para aprenderes como a prima aprendeu!
O menino pegou no brinquedo, tão feliz e impaciente que já nem queria levantar os olhos dele.
– Diz obrigado. – Eric recordou-o, como nunca ninguém o tinha recordado a ele.
– Obrigado. – repetiu o rapazinho, sem saber se para o homem se para a prima. O brinquedo era demasiado novo e divertido para se preocupar com essas coisas.
Os adultos riram, e o homem ofereceu:
– Também posso fazer uma espada.
– Sim, uma espada! – Eric concordou logo, interessadíssimo. – Traz-me destes brinquedos e far-te-ei um homem rico.
– Não o faço por dinheiro, meu senhor. – revelou o ancião, todo ele sorrisos. – Faço-o pela alegria destes pequeninos. Mas diga-me quando regressa, e terei muitos mais para o seu filho.
No rosto de Eric, o sorriso apagou-se. Não sabia se regressaria. Daquele dia em diante a vida recomeçava, e não era bom o que recomeçava.
– Está tudo pronto? – Hildegaard indagou do homem, que de imediato garantiu:
– Mais pronto não podia estar. Os meus rapazes já prepararam tudo.
– Muito bem. Que se faça o Conselho.
Mestre Symm despediu-se com uma ligeira vénia e Eric esperou que este se afastasse para perguntar, confundido:
– O Conselho? Convocaste o Conselho?
Os primeiros raios de sol já devolviam os reflexos de ouro aos cabelos da sua prima, e nunca aqueles olhos lhe tinham parecido tão claros, verdes e transparentes como gotas de orvalho.
– Sim, convoquei. – Hildegaard respondeu, com a gravidade que a ocasião exigia. – Outra das nossas tradições a que nunca assististe. Mas é justo que assistas. O Conselho diz-te respeito.
Eric tinha ouvido falar do Conselho. Uma reunião de todas as pessoas importantes das Terras Verdes, e do povo também. Uma reunião absolutamente proibida a estranhos, como ele era um estranho. O que o espantava era ser convidado. Hildegaard podia muito bem ter convocado o Conselho mais cedo, ou depois de ele partir. Afinal, para que servia o Conselho? Não estava já tudo decidido?
De propósito, foram os últimos a chegar. Na maior praça da vila, ruas de gente esperavam-nos. Um simples estrado de madeira tinha sido erguido no chão, sem qualquer luxo ou adorno. As gentes das Terras Verdes eram frugais. Talvez não o tivessem sido, nos tempos em que o Unicórnio reinava, mas certamente eram-no agora.
Hildegaard subiu os degraus do estrado, e Eric seguiu-a, como lhe tinha sido pedido. Muito pouco à vontade por segui-la, onde não lhe parecia que fosse o seu lugar. O silêncio, os semblantes carregados em toda aquela gente que o fitava, diziam-lhe o mesmo. Alta e altiva, a digna soberana das Terras Verdes voltou-se para o seu povo. Ninguém pronunciava uma palavra.
– Amigos, obrigada pela vossa presença. – Hildegaard começou, mais formal e solene do que Eric alguma vez a tinha visto. Sim, aquela era a rainha que queria ter a seu lado. A soberana que já o era. Mas não estava já tudo decidido, que tal nunca aconteceria? – Todos sabeis o que nos traz aqui hoje. A minha mão foi pedida e o vosso conselho é necessário.
– Hildegaard, – ouviu-se a voz que Eric logo reconheceu, a voz da sacerdotisa, a celebrante dos rituais, algures de entre a multidão – perdoa-me, mas ele não devia estar aqui. Este é o Conselho das Terras Verdes, reservado apenas à gente das Terras Verdes.
– Deveras! – apoiou outro homem, junto dos sacerdotes, mas não um deles. – O imperador, com o devido respeito, não devia estar aqui!
– Não devia estar aqui! – começou um burburinho na praça, uns concordando, outros mandando calar os primeiros.
Eric, alguns passos atrás da sua prima, com o filho nos braços, não gostou do aspecto que as coisas levavam. E aquela gente tinha razão, não era o seu lugar, e o melhor era ir-se embora…
– Perdoai-me vós, – Hildegaard ergueu a voz acima da deles, e o burburinho cessou – mas o meu primo tem todo o direito de aqui estar. O mesmo direito que qualquer um de nós. Ele é filho de Elena, da casa do Unicórnio, filha das Terras Verdes. Se ele hoje é um estranho, não é a ele que deveis culpar. – Hildegaard já os tinha calado a todos, mas de sobrolho franzido continuou: – O meu primo veio aqui como um amigo, para conhecer os nossos costumes, respeitando as nossas tradições. Devemos-lhe o mesmo respeito. Apesar de tudo, bem sei, apesar de tudo! Nada pode desfazer o passado, e estamos aqui para deliberar o futuro.
Novo burburinho percorreu os presentes. A presença do imperador já parecia ultrapassada, mas o motivo do Conselho só agora começava a ser discutido.
– Aconselho contra esta união. – a sacerdotisa falou outra vez, séria e indignada. Eric não gostou nada de a ouvir, mas admirou-lhe a coragem. Se todos os seus inimigos fossem assim tão honestos talvez não fossem inimigos. – O nosso lugar é aqui, nas Terras Verdes, onde não somos perseguidos, onde somos livres de ser quem somos. Hildegaard, que loucura te acomete? Sabes o que nos espera lá fora. Nem devia ser necessário o Conselho para te alertar do que tão bem conheces.
– Mulher egoísta! – acusou uma voz, antes que Hildegaard pudesse responder. Uma voz que Eric conhecia também. Etha, do outro lado da multidão, ainda nas suas vestes sacerdotais. – O que espera a Hildegaard lá fora!… E o que espera a Hildegaard cá dentro, uma vida de solidão e renúncia? É isto que desejamos à nossa soberana, cuja mão foi pedida por outro soberano? Devemos adverti-la que recuse, que abdique do seu coração, para nos servir? Devemos exigir-lhe que se torne uma monja, como aquelas nos conventos lá fora?
– Não! A Hildegaard deve ouvir o seu coração! – respondeu uma jovem, loira e bonita, que Eric só conhecia por ser a filha do único taberneiro das Terras Verdes. O taberneiro seu pai, ao lado dela, não concordava nada com a filha.
– A voz da juventude! – desdenhou este, virando-se para os outros presentes. – A voz de quem não conhece o mundo, e os horrores que lá se praticam.
– Ele tem razão! – aplaudiu uma mulher mais velha. – Devemos abrir as nossas portas ao mundo, aceitar que nos persigam na nossa terra também?
– Devemos então fechar-nos, até que já não reste ninguém para perseguir, quando todos nós desaparecermos de vez? – contrapôs Etha.
Aquela era uma aliada com que Eric não contava, mas a discussão começava a ficar acesa e não queria o seu filho a ouvir aquelas coisas. Fingindo que brincava com o arco, o menino permanecia sério e de olhos baixos, pouco habituado à discórdia. Eric não o queria proteger de tudo, seria um erro protegê-lo de tudo, mas por hoje já chegava. Pousou-o no chão, com a promessa segredada:
– O pai já vem!
E o imperador aproximou-se da sua prima, que silenciosa e de expressão fechada continuava a ouvi-los, como se quisesse esperar até os ouvir a todos.
– Posso falar? – perguntou-lhe. Com um espantado encolher de ombros, Hildegaard deixou que o debate respondesse por ela, que não deviam estar na disposição de escutar um homem que na opinião deles representava o inimigo. Mas Eric não se deixou intimidar. – Posso falar?! – perguntou mais alto, à assembleia. – Sei que não é o meu lugar, mas posso falar?
Um a um, os presentes calaram-se e voltaram-se para o fitar, de olhos arregalados, como se acabasse de proferir uma afronta. Que assistisse ao Conselho era já uma transgressão, falar era inconcebível! Mas Eric não se importou. Parecia-lhe bem que aquela era a batalha que decidiria o seu futuro com a mulher que amava, e não sairia dali sem lutar por ela.
– Compreendo-vos! – aproveitou o silêncio. – Sei o suficiente para compreender os vossos receios. Perguntai à minha prima, ela dir-vos-á. Pessoalmente, não me incomoda nada. Nunca me incomodou. A vossa Deusa, o vosso dom, os vossos fantasmas, que seja! Nada disso é relevante para mim e para os meus planos. Tendes razão, não sou um de vós. Não conheço na pele o que vós conheceis, e deveis pensar que falo sem saber. Admito que sim, mas digo-vos isto: há muito tempo que penso, desde que vos conheço que penso assim, que o vosso isolamento vos é prejudicial. As pessoas temem o que não conhecem, e os vossos segredos não vos ajudam. Não digo que não vos tenha protegido no passado, concedo-vos essa sabedoria, mas não falo do passado. Falo do presente, e as coisas estão a mudar no mundo lá fora. Nunca como agora foi altura de agarrar essa mudança para vosso benefício. As pessoas temem-vos, é por isso que vos perseguem. Seguramente não vos estou a dar uma novidade! Quando as pessoas vos conhecerem deixarão de vos temer. Mas para isso é preciso que vos deis a conhecer. É este o meu conselho.
Eric calou-se, por um momento, e estudou a audiência. Ouviam. Até a sacerdotisa e o taberneiro, ouviam. Não os convencia, nem tal esperava conseguir, mas era já uma vitória. Bem, quase uma vitória. Alguém o ouvia também, alguém que o olhava de olhos incandescentes, de uma das pontas mais afastadas da multidão. Alguém que o acusava de não ter compreendido nada. Melissen, zangada, voltou as costas e abandonou o Conselho. Eric viu-a ir, e compreendeu a mágoa e o medo. Jamais as suas palavras ecoariam àqueles ouvidos. Mas ainda podiam ecoar a outros.
– Não estou aqui para abrir as vossas portas ao mundo lá fora. – continuou, para a sacerdotisa, para o taberneiro, para todos os que viam nele uma ameaça. – Não foi esse o meu acordo com as Terras Verdes, convosco, que conto como aliados desde o fim da guerra. Foi o acordo, e jamais vos pediria o contrário da minha palavra dada, nem tal me passa pela cabeça. Deixo apenas o meu conselho, que sejais vós a descobrir o mundo lá fora, e como mudou desde que o conhecestes. Mas aconselho cautela. A mesma cautela que aconselhais à minha prima. Sei o que temeis e sei que tendes motivos para temer. Mas não a mim. Não estou aqui para perturbar o vosso refúgio. Sabe Deus que todos precisamos de um refúgio de vez em quando! Era o que vos queria dizer, e agradeço por me ouvirdes. Percebo que o meu lugar não é aqui, apesar da generosidade da minha prima que me convidou como se não fosse um estranho. Sei que o sou, e respeitarei as vossas tradições como espero que respeitem as minhas. Deixo-vos, agora, ao vosso Conselho. Um bom dia para todos, ou um bom Solstício, seja como for que se diz aqui!
Terminando, Eric tornou a estudar a audiência. Não era uma vitória, mas era qualquer coisa. Era o melhor que se podia conseguir. Tudo o resto lhe escapava das mãos.
Dignamente, o imperador pegou no seu filho e desceu os degraus. As ruas de gente abriram-se para o deixar passar, e um silêncio desorientado encheu a praça.
Hildegaard esperou, como se ao longe ainda soubesse onde ele ia, e só falou quando o seu primo já não a podia ouvir.
– E agora ele ficou a pensar que convoquei este Conselho para vos pedir permissão! – explicou, com um sorriso travesso, e cruzou os braços no peito. – Não era disso que tratava este Conselho, mas o meu primo tem razão. Visitei o reino, recentemente, e vi mudança. Não a suficiente, mas vi.
– Não a suficiente, – Etha interrompeu, enérgica, para a multidão – mas é a primeira vez em muitos anos que as Terras Verdes têm um amigo. Um amigo que zela pelos nossos interesses, que zelará muito mais se os nossos interesses forem os dele!
– Basta, Etha! Já toda a gente percebeu onde queres chegar. – Hildegaard ralhou. Às vezes, por muito que gostasse daquela amiga, Etha conseguia arreliá-la. – Mas também a Etha tem razão, e isso deve pesar na vossa decisão. Gente das Terras Verdes, não estou aqui para vos pedir permissão. Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que neste Conselho me escolhestes como vossa soberana. Agradeço a vossa confiança e sempre farei tudo para merecer essa honra. Os argumentos foram debatidos. Todos falaram. Até o meu primo falou! Todos sabemos o que está em causa. – e Hildegaard olhou a todos, de um lado ao outro da praça. – A vossa decisão pesará na minha, como sempre pesou. Pergunto-vos, aqui e hoje: se a minha decisão for aceitar o pedido do meu primo, devemos eleger outro soberano nas Terras Verdes? Há muito tempo que o Unicórnio é senhor nestes domínios. Mas tudo muda, a vida é mudança. De tudo abdicarei se for o melhor para as Terras Verdes. Sabei isto, sabei sempre isto. O meu compromisso é convosco, sempre convosco. E agora, vamos votar.




Continua...

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