quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

SOLSTÍCIO XIV

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A meio do caminho, Eric pousou o menino no chão. Continuaram devagar, de mãos dadas, em direcção ao castelo. Punha-se ainda mais frio. O sol tinha brilhado de madrugada, mas grossas nuvens tinham-no encoberto e agora o céu era apenas um manto cinzento. O tempo tinha mudado, e Eric pensou nessa ironia. Tanto que aquela gente se tinha esforçado por dar as boas-vindas ao Sol e já o ingrato lhes falhava.
– Vamos ao castelo da prima buscar as nossas coisas e vamos para casa. – explicou ao seu filho. – Sim, estamos sozinhos, mas podia ser pior. Um dia perceberás que já é uma sorte termo-nos um ao outro. Há quem não tenha ninguém.
O resto já não disse em voz alta. É claro que aquela gente não vai autorizar este casamento. Devem estar todos a amaldiçoar-me naquele maldito Conselho, a envenená-la contra mim! Da maneira que a Hildegaard os ouve, é o fim. É mesmo o fim. Eric respirou fundo, num suspiro amargo e pesado. Agora é que ela não vai…
O menino parou e puxou-lhe pela mão. Na colina que ladeava a vereda verdejante, uma dúzia de crianças brincava. Crianças de todas as idades, dos pequeninos aos crescidos que tomavam conta deles. Pequeninos da idade do seu filho.
Eric sabia porque é que ele olhava. Gostava de brincar com outras crianças, mais do que gostava de brinquedos. Sempre que podia, Eric tentava arranjar-lhe amiguinhos. Viajavam tão constantemente que nem sempre os havia disponíveis. Mas ali estavam, as crianças das Terras Verdes, a quem o Conselho nada interessava. Hildegaard tinha-lhe dito que já não havia muitas, mas certamente não podiam ser só aquelas! Corriam e brincavam, nos seus jogos, e o menino olhava, cheio de vontade de brincar também, e Eric teve uma ideia.
– Já comeram? – perguntou-lhes. – A minha prima tem uma mesa cheia de guloseimas e agora que a festa acabou precisamos de ajuda para comer tudo. Alguém quer guloseimas?
As crianças entreolharam-se, indecisas, mas apenas um instante. Tão inocentes, aqueles meninos e meninas das Terras Verdes, não conheciam o perigo de um estranho. Mal sabiam o que era um estranho, ali tão isolados. Felizmente, o estranho que os convidava era benévolo, porque imediatamente agradeceram e correram atrás dele até ao castelo.
Eric abriu-lhes a porta e apontou-lhes o salão. Todos entraram, aos gritinhos e risos, e a mesa foi prontamente atacada. O pequeno Eric, entre eles, partilhava o seu arco com outro menino igualmente curioso. Até já experimentavam usá-lo!
Não devia estar ninguém no castelo, até os velhos criados se encontrariam no maldito Conselho, mas Eric não se preocupou. Algumas das crianças eram crescidas, dos seus onze, doze anos, e podiam olhar pelos mais novos. Com um sorriso, deixou-os às suas brincadeiras e começou a subir os degraus de pedra até ao andar superior.
A meio das escadas, o sorriso desfez-se. O coração afundou-se-lhe, afogado em desânimo, e uma lágrima traiu-o. A vida recomeçava, nesse dia, e não era bom o que recomeçava. Esperava-o um casamento, muito em breve, com uma perfeita estranha, um casamento de tão mau agouro como o tinha sido o dos seus pais. Bem que o tinha tentado evitar. Hildegaard, surgida na sua vida quando já não a esperava, tinha sido a resposta a todos os seus anseios. Ou assim o sonhava, mas agora compreendia. Hildegaard amava a sua liberdade, e jamais lhe pediria que abdicasse dela. Invejava-a. Porque Eric tinha feito uma escolha, há muitos anos, e não era livre.
Por um instante, apenas um instante, passou-lhe pela cabeça pegar na sua trouxa, e no seu cavalo, e no seu filho, e seguir para norte. Para lá das Terras Verdes, para lá do reino, para lá do império, e nunca mais aparecer… Mas era loucura. Tinha havido um momento, sim, para desaparecer, mas tinha feito uma escolha e agora era tarde. Agora era o momento de desistir, e Eric deixou que outra lágrima lhe cruzasse o rosto resignado. Tinha feito tudo ao seu alcance mas não tinha sido suficiente, e aquele sonho acabava ali.
Quando Hildegaard chegou, não muito depois, Eric já a esperava no salão, em trajes de viagem e de bagagem arrumada, para se despedir.
Hildegaard olhou para ele e franziu o sobrolho, e depois contemplou o que tinha acontecido ali, a sua casa repleta de crianças barulhentas e irrequietas, a comerem tudo o que havia na mesa.
– Primo, malvado! – ralhou-lhe, quase a sério. – Os pais deles andam desvairados à procura dos filhos, está toda a gente ralada porque desapareceram, e trouxeste-os para aqui?!
– Não sabia que era preciso permissão. – Eric respondeu, confuso. – Estavam sozinhos. Só os convidei para comerem o que resta. – e, mais baixinho, admitiu à sua prima: – E porque o meu filho nunca tem com quem brincar, achei que podia brincar com eles…
– Nós brincamos com ele! – prometeu uma menina de longas tranças castanhas, que disfarçadamente estava a ouvir tudo.
Hildegaard sorriu-lhe.
– A neta da Melissen. – apresentou-a ao seu primo.
Eric olhou melhor a menina esperta e alegre, e sorriu também. Sempre teria boas notícias para o capitão Lars.
– Então é melhor mandá-los embora, antes que os pais deles venham pela minha pele! – gracejou, mas agora era Hildegaard quem seriamente o fitava, olhos nos olhos.
– Ias-te embora?
– Sim, eu…
– Ainda bem que cheguei a tempo. – Hildegaard respondeu, misteriosa, mas o nervosismo apertou-lhe as mãos uma na outra. Um nervosismo como Eric nunca lhe vira. – Espero ter chegado a tempo. O Conselho acabou. Tivemos uma votação. Continuo a ser soberana das Terras Verdes. O meu povo aceita a minha decisão. – e os olhos verdes brilharam-lhe de lágrimas e alegria. – A minha decisão é sim. Se ainda venho a tempo.
Eric endireitou as costas, abalado, e semicerrou os olhos ao indagar os dela, como se lhe custasse acreditar.
– E a tua liberdade?…
– Já tive muita liberdade. – explicou Hildegaard, com um leve aceno. – Tanta liberdade que se tornou solidão, e a solidão tornou-se agradável. Até tu chegares. Caso com o homem, não com o imperador. Caso contigo, porque te amo. Se é que ainda não desististe…
– Desisti. – Eric confessou, o coração quase a saltar-lhe do peito, e aproximou-se para lhe tomar o rosto entre as mãos. – Desisti, e estava infelicíssimo. Mas já não estou!
Esquecido de tudo, Eric quase a beijava, quando Hildegaard interpôs a mão entre eles, apontando com a cabeça para as crianças. Não estavam sozinhos. Haveria tempo para isso mais tarde.
Eric já não pensava que importasse que todos vissem. Apertou-a contra o peito e Hildegaard não se afastou daquele abraço. No salão, as crianças já não lhes prestavam atenção nenhuma, entretidas a correr em roda da mesa. Mas Eric encontrou os olhos do seu filho, atentos, vigilantes, a espreitar o que se passava. Como se adivinhasse, o menino sorriu. Eric já sabia que ele aprovaria. Há muito tempo que o ouvia dizer-lhe, em pensamentos, se acreditasse nessas coisas, que queria a prima com eles. Eric já nem perdia tempo a questionar o que ouvia do seu filho. Sim, teriam a prima com eles. Sim, tinham-na conquistado.
E a vida começa de novo! Eric recordou, e sorriu.





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SOLSTÍCIO
por d.d. maio

Dezembro 2016
Última actualização: Outubro de 2019


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