quinta-feira, 22 de março de 2018

Nepenthos - Capítulo I - segunda parte

Já publicado
Capítulo I - primeira parte


A jovem ergueu os olhos, evitando os do taberneiro. Olhava antes o caminho em sua frente, o escuro corredor que conduzia à sala cor de fogo de onde ouvia os homens falar alto e rir às gargalhadas


Os homens irromperam numa gargalhada cúmplice, e Malkom riu-se também e bebeu outro gole, mas novamente a sua expressão se tornou séria.
– Julgavam que não éramos sequer uma ameaça, tão poucos e divididos. Já nos tinham cortado a cabeça, em pensamento, de tal maneira que nem se deram ao trabalho de no-la cortar. E devo admitir, os malditos tinham razão. Quem acreditaria que chegássemos onde chegámos? Eu próprio não acreditei.
Não era novidade para ninguém. Também Malkom tinha conquistado uma alcunha nos tempos da guerra, e não era por nada que lhe chamavam o Cínico. Mas os homens àquela mesa não estavam na disposição de aturar lembranças sombrias e vaiaram-no com a alacridade de quem já tinha bebido canecas a mais.
– Melhor era a conversa quando falavas das pulgas! – calou-o o conde Ian, com uma careta reprovadora que apenas um amigo de infância, quase um irmão, podia dirigir-lhe sem que este ficasse ofendido. – Ninguém te quer ouvir! Não viemos aqui para brindar à nossa vitória? Ou para beber, com a desculpa de brindar à nossa vitória? – e voltou-se, rindo, para os antigos companheiros de armas. Todos lhe reconheceram a natureza ligeira, quase insensata, com que dizia sempre a primeira coisa que lhe vinha à cabeça. Mais rápido ainda era na prontidão com que cavalgava para a batalha de espada em punho, à frente e sem temor. A fama de Ian o Valente era tão grande entre aliados como adversários. – Proponho outro brinde, ao nosso magnífico soberano que nos uniu numa causa gloriosa: estar aqui, esta noite, a beber até cair para o lado!
Só dele era esperado que se referisse assim ao imperador. Ian e Malkom eram os seus melhores amigos, de um companheirismo forjado nos campos de batalha, mas em nada faltava àquela amizade o riso e a folia de homens jovens e nem sempre inclinados a respeitar formalidades. Nem estavam ali para outra coisa senão para se divertirem, naquela noite entre irmãos de armas em que ninguém era obrigado a comportar-se à altura da sua posição.
Eric baixou os olhos e lambeu a espuma da sua cerveja, numa expressão tão satisfeita como meditativa, e abanou a cabeça antes que Ian pudesse receber uma resposta:
– Basta de brindes à minha pessoa por hoje! Brindamos à vitória que nos trouxe aqui, – começou, e olhou a cada um dos homens sentados, e alguns de pé, muitos que tinham vindo de longe para aquela comemoração. Homens que tinham passado a juventude na guerra mas que finalmente tinham podido regressar a casa, e que por isso mais alegremente aceitavam o convite. Todos faziam silêncio ao ouvi-lo, adivinhando-lhe pelo tom de voz que se seguia algo de sentido e importante. – e brindamos pelas vitórias futuras que ainda nos esperam. As batalhas que temos à nossa frente não se ganham com a espada mas com determinação e propósito. Os velhos tempos acabaram e os novos tempos não apresentam menos desafios. Conto com todos vós, senhores, capitães, amigos, que partilhais os meus desígnios, para continuardes a lutar as futuras batalhas que serão travadas neste reino. Em vós confio como confiei quando era a nossa vida que estava em causa, e sei que não me desapontareis como não me desapontastes face à morte. Se exércitos não nos travaram nada nos travará agora. – e então Eric levantou-se, erguendo a vulgar caneca como se fosse a mais preciosa taça. Todos o imitaram. – A nossa vitória não acabou, está apenas a começar. Brindo à paz. Brindo à mudança. Aos novos tempos!
– Aos novos tempos! – ouviu-se em coro, e desta vez não eram levianos os brindes que se ergueram entre eles.
Por momentos, a solenidade das palavras ecoou pela sala e trocaram-se olhares de orgulho. Todos aqueles homens tinham uma missão ao serviço do imperador, que os enobrecia, que os elevava a circunstâncias menos humildes do que aquelas em que tinham nascido. Eric brindou com os mais próximos, e quando se voltou para Ian, ao seu lado direito, encontrou-lhe nos olhos negros a censura de quem estava farto de discursos. Já tinha ouvido muitos e não julgava que a noite tomasse tal rumo. Na verdade, Eric também não o tinha planeado. Haveria muito tempo para falar de assuntos sérios com os seus leais capitães de armas. Aquela não seria essa noite.
– Mas o meu amigo tem razão. – concedeu, abrindo um sorriso indulgente aos veteranos que brindavam. – Basta de pensar em deveres por hoje. Estamos aqui para celebrar, e para beber, e para o que mais a noite oferecer. Que seja esse o nosso dever por agora!
Eric ergueu novamente a caneca, e ouviu os homens aprovarem e rirem, e sentou-se descontraído à cabeceira da mesa. Malkom e Ian acompanharam-no num brinde final entre os três. Os convivas entregaram-se à bebida e à conversa, e Malkom aproveitou para congratular o imperador em voz baixa:
– Excelente! – elogiou, sincero, com um brilho de admiração nos olhos cor de mel. – Quando abres a boca nada ficas a dever ao Tentador. E pensar que a princípio não te sabia um bom orador…
– Ora! – interrompeu Eric, encolhendo os ombros com modéstia. – Como te disse, aprendi tudo nos livros do mosteiro. Li as obras da Antiguidade, estudei a vida dos grandes reis e generais e conquistadores. Apenas lhes sigo o exemplo. Tudo o resto foi sorte e oportunidade. Algo que também não faltou aos mais ilustres, quando no antigo império de…
– Oh não, não! – insurgiu-se Ian, abanando a cabeça. Já imaginava que Eric se ia pôr a contar qualquer história de guerras antigas, como fazia amiúde se não o calassem. – Viemos aqui para beber, não estamos em nenhum mosteiro. Pelo contrário. – e o seu sorriso travesso revelou que afinal não pensava só em bebida. – Têm belas moçoilas por aqui! Por falar nisso… – e Ian ergueu a voz e o olhar que dirigiu ao taberneiro, por ali especado a um canto da sala a aguardar as ordens da nobre clientela. – Quando é que trazem a puta coxa?
Malkom riu-se. A puta coxa era uma espécie de atracção. Tinha chegado à taberna há alguns meses e era conhecida pela sua relutância em agradar aos fregueses. Claramente era um jogo, um truque, como ela tão bem se conseguia fazer passar por ingénua donzela.
Eric não se riu. Não tinha tanta certeza de que fosse um jogo. Já tinha observado a rapariga em ocasiões anteriores e parecia-lhe mais que a pobre desgraçada não tinha nascido para aquela vida. Mas até podia ser um jogo, como tantos outros com que as prostitutas eram peritas em divertir os clientes. Malkom e Ian divertiam-se, e certamente não seria ele a preocupar-se com o assunto.
O taberneiro dobrou-se numa humilde vénia e saiu pela porta. Assim que virou costas, os traços do rosto antes sorridente e servil endureceram-lhe as rugas da idade. Caminhou até ao canto escuro de um corredor, onde sentada num pequeno banco, de cabeça baixa e mãos apertadas sobre o colo, a jovem esperava. O taberneiro parou uns instantes a inspeccioná-la. Estava suja, mal vestida e descalça. Se freguesia daquele calibre começava a chamar por ela talvez tivesse de lhe comprar trapos decentes. Mas adiantaria? A rapariga era tão inútil. A princípio tinha-a considerado um mau negócio e passou-lhe pela cabeça mandá-la embora, mesmo perdendo o dinheiro que à socapa trocou de mãos com quem a vendera. Era contra a lei e o costume que se transaccionassem servos e outros tipos de gente de ainda inferior condição a quem ninguém reclamaria, mas com algum expediente lá lhe chamavam compensação e o negócio ia-se fazendo. Por pouco o taberneiro não se julgava enganado, arrependido de ter desperdiçado moeda em tão ruim investimento, quando algo de curioso começou a acontecer. Alguns homens, bem bebidos, achavam graça àquela indolente que se fingia apudorada e que muitas vezes até chorava lágrimas verdadeiras. Só por essa razão ainda a mantinha no estabelecimento.
Mas na verdade a rapariga era inútil. Nem se sabia arranjar. Com um suspiro exasperado, o taberneiro aproximou-se e soltou-lhe o cabelo. Já lhe tinha dito que o usasse solto, as madeixas castanhas sobre os ombros descobertos. A inútil não dava ouvidos.
– Querem-te na sala. – anunciou, e quase a viu estremecer, mas ela não levantou a cabeça. – Põe-te de pé, vamos! Não temos a noite toda! – repreendeu, e só então a rapariga se apoiou na parede para se erguer, sem tirar os olhos do chão. – Presta atenção! Sabes quem está naquela sala? O próprio imperador e outros nobres. Deixa-te de lamúrias e trata de satisfazê-los bem satisfeitos. Quando te trouxeram para aqui bem me avisaram de que não prestavas. Fiquei contigo porque me saíste barata mas não és lucro que compense a despesa. É bom que passes a levar o trabalho a sério senão ponho-te na rua num esfregar de olho. A tua sorte é que ainda há quem te ache uma novidade, mas olha que isso acaba num instante. As outras mulheres, muito mais competentes do que tu, mereciam mais ir esta noite àquela sala. Mas é a ti que querem, e és tu que vais. Eu entendo-me com elas. Mas que seja a última vez que to digo: ou começas a trabalhar como deve ser ou podes pensar em ir pela estrada fora!
A jovem ergueu os olhos, evitando os do taberneiro. Olhava antes o caminho em sua frente, o escuro corredor que conduzia à sala cor de fogo de onde ouvia os homens falar alto e rir às gargalhadas. Já deviam estar muito bêbedos. Sem que o taberneiro precisasse de lhe dizer mais nada, caminhou até lá, a mão esquerda apoiada na parede a cada passo como se habituara a fazer desde que coxeava. Procurando, naquela parede familiar, um último e frio e breve amparo.
Parou à porta e observou o que a esperava. Eram tantos. Novamente baixou os olhos e cerrou os lábios, e não teve coragem de avançar. Não foi preciso, porque logo um dos homens a foi buscar por um braço. Alguns eram fregueses habituais e fizeram questão de explicar aos outros o que nela os interessava. Mas como era tímida! Mas como se fingia inocente! Quem a visse assim recatada nem adivinharia que já passara por bordéis no reino inteiro. A algazarra e as gargalhadas aumentaram de tom. Todos queriam experimentar, mas o que a tinha agarrado primeiro mandou-os esperar pela sua vez. Puxou-lhe pela manga do vestido, já muito gasto e remendado, e encostou-a contra uma mesa ao centro da sala. Sôfrego, beijou-a no pescoço e apalpou-lhe os seios e as coxas. Os outros homens incitavam com sugestões e gritos viris.
Eric reparava, discreto, agora que as atenções se desviavam para a luxúria do espectáculo, que ela mantinha os olhos fechados, e que deixava que a cabeça se lhe balanceasse à vontade daquele que lhe manipulava o corpo, como se desmaiada ou adormecida. O homem deitou-a na mesa, derrubando canecas e pratos e jarros. Farto de brincadeiras, baixou-lhe o decote do vestido, expondo os seios, e levantou-lhe a saia. Eric desviou os olhos, como sempre preferia fazer, quando dela ouviu um lamento de dor, quase imperceptível no meio daquela ruidosa galhofa. Sem que o desejasse, tornou a olhar. Os lábios dela, entreabertos, pareciam murmurar a palavra “não”, embora não a chegasse a pronunciar, mas Eric viu-lhe nos olhos castanhos, por instantes descobertos num piscar de pálpebras, que pesadas lágrimas lhe molhavam o rosto. Não se lembrariam eles de que a pobre rapariga era um ser humano também? Até então, Eric não se tinha apercebido de que entretanto, numa das muitas noites naquela taberna, lhe ouvira o nome e o sabia. Chamava-se Reena.
Em breve todos os que assim o entenderam se satisfizeram como lhes apeteceu e deixaram-na ir embora. Reena saiu por onde entrara, num passo mais lento e cambaleante do que era costume e sem erguer os olhos do chão. O imperador não a voltou a ver na sala.
Entre os homens, a conversa retomou onde tinha ficado, as glórias do passado e as conquistas do futuro.



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