Capítulo I - primeira parte
Capítulo II - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Capítulo III - segunda parte
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Capítulo III - segunda parte
Desde que o futuro se apresentara demasiado medonho para o contemplar
Reena tinha
pensado, ao chegar àquele
castelo, ao ver o portão e os guardas, que ia ser um cativeiro igual aos
outros. Agora já não lhe parecia sequer um cativeiro. O portão, durante o dia,
estava sempre aberto para que a gente da vila pudesse entrar e sair. Dois
guardas a cavalo, às vezes três, revezavam-se à entrada. Mais guardas, alguns à
vista outros ocultos, vigiavam todo o domínio real. A princípio Reena tinha-os
temido, mas com o passar dos meses apercebia-se de que não lhe dirigiam as
intenções que receara. Mal a olhavam, atentos à sua missão de proteger a
propriedade do imperador. Era assim que a encaravam também, propriedade do
imperador. Nem mais, nem menos.
Há tempo que Eric se tinha
ausentado, como Reena ouvira dos homens da sua escolta, e não se sabia quando
voltaria. Não havia muito trabalho quando ele viajava, talvez por isso os
criados gostassem tanto das suas ausências. Passavam o dia na cozinha, a
tagarelar com a gente da vila, e o assunto predilecto era aquela espécie de
criada a fingir que Eric tinha trazido para o castelo. Uma desprezível rameira
que tinha aparecido na taberna! Reena escutava-os, e evitava-os. Tinham-se
tornado tão cortantes, as troças e os insultos, que agora começava a fitar longamente
o portão aberto. Já não era a primeira vez que pensava no que aconteceria se se
atrevesse a cruzá-lo. Fê-lo naquela tarde, como se o ódio que ouvia atrás de si
a empurrasse para fora. Pelo menos ficaria a saber o que aconteceria. Os guardas,
à conversa um com o outro, nem pestanejaram. Nem sequer lhe perguntaram onde
ia. Era tão estranho, sair sem que ninguém a impedisse. Reena não tinha
imaginado que ia ter tanta liberdade.
Não tencionava ir muito
longe, queria apenas fugir dos criados e dos ajudantes da vila. Distraiu-se a
dar a volta ao muro do castelo, mais extenso do que tinha previsto. Estava frio
lá fora, e a neve tudo cobria com o seu manto branco, mas Reena descobriu
restos da antiga muralha, e árvores de troncos negros e ramos carregados de
pingos de gelo, cintilantes, caprichosos, frios ao toque mas agradáveis à
vista. A paisagem era de montanha, como nunca tinha contemplado, e ao longe
vislumbravam-se os elevados cumes, alvos e azulados num horizonte de
resplandecente cinzento, que defendiam o castelo a norte. Nessa direcção, uma
estreita vereda desaparecia entre as árvores mais à frente. Reena ponderou o
perigo de se aventurar por ela. Temia, também, a maldade de tantos homens que a
tinham usado na taberna da vila. Parecia-lhe um caminho deserto e sossegado,
pelo menos naquela altura do ano. E se se cruzasse com alguém, e se precisasse
de ajuda, não a protegeriam os guardas se os chamasse? E se não a protegessem?
E importava?
No dia seguinte, Reena
apressou-se a terminar as suas tarefas e saiu. Levava um xaile, desta vez, e a
intenção de se embrenhar pelo caminho até se cansar, ou que fossem horas de
regressar. Pelo menos assim evitaria os criados. E a paisagem… Como era bonita
aquela paisagem, e silenciosa e tranquila, onde apenas os pássaros e pequenos
animais a espreitavam timidamente de suas tocas. Entrava-lhe pelos olhos, a
beleza invernal, e Reena deu por si a sorrir como já não sorria há muitos anos.
Também há muitos anos não lhe era permitido passear assim, talvez nunca lho
tivesse sido permitido, sem que ninguém lhe perguntasse para onde ia e de onde
vinha e sem ser esperada no regresso com censuras ou castigos. Reena tornou a sair,
muitas vezes, e desvendou um emaranhado de veredas que subiam e desciam, na
direcção da montanha ou do vale ou sempre em frente. Se era tão bonito de
inverno, como seria na primavera, quando as árvores enfeitassem de folhas os
seus ramos e as colinas se cobrissem de flores? E ainda ali estaria, na
primavera, para poder deslumbrar-se no renascer da natureza? Agora Reena
desejava ainda ali estar, naquele sítio onde podia sair em liberdade. Onde
tinha paz.
Todos os dias se aventurava
até mais longe. Não temia perder-se, no passo lento a que já se habituara, mas
seguia com cuidado e atenção e não arriscava continuar em frente antes de
conhecer o caminho de regresso. Tinha tempo, e podia parar e descansar e admirar
o que a rodeava. Mas aquelas caminhadas eram cansativas. Reena lembrou-se de
apanhar um galho para lhe servir de auxílio e aprendeu a apoiar-se nele a cada
passo. Continuava a ser cansativo, embora menos, e a brisa fresca que lhe soprava
os cabelos valia o sacrifício. Começava a compreender os caminhos e a adivinhar
onde iam dar, e já imaginava que aquela vereda que descia o vale se abeirava da
vila. Aproximou-se o suficiente para observar as pessoas à distância, ocupadas
nos seus afazeres, comprando e vendendo no mercado, entrando e saindo da
pequena igreja de dois torreões e harmoniosos sinos. Aí, Reena voltou para trás
e decidiu não avançar mais.
Os piores rigores do inverno
já tinham passado quando um modesto mercador de tecidos visitou o castelo.
Vinha de longe, do sul, e tinha conseguido aquela comissão do próprio imperador
devido à qualidade dos artigos com que anualmente abastecia o castelo. Reena
espantou-se, ao apreciar a suavidade das lãs e a frescura dos linhos, que se
destinassem ao uso da casa e às roupas dos criados. O imperador, para as suas
vestes, comprava longe e comprava caro, mas preocupava-se com o conforto dos
seus servidores. Reena até hesitava em escolher tecidos para si, para o verão.
Ainda ali estaria no verão? Passou-lhe pela cabeça, nesse momento, que se não
estivesse ela poderia estar outra rapariga em semelhantes circunstâncias, que
igualmente se maravilhasse com uma arca cheia de boas roupas, e não hesitou
mais.
Reena tinha descoberto
outros tesouros abandonados em arcas poeirentas e esquecidas. Numa delas
encontrou teares e agulhas, e até linhas de bordar. Ninguém demonstrava
interesse naquelas coisas, nem se importavam que as usasse. Reena achava-as
inestimáveis, e ao serão, na solidão do seu quarto, dedicava-se a coser e a
bordar os vestidos novos. Era tão estranho voltar a bordar, como fazia na casa
em que crescera sob o olhar benévolo da sua primeira senhora. Às vezes
parecia-lhe que aquela também era, como a outra, uma casa em que nada lhe
faltava. Nem a verdade. Pois ali, ao contrário desse primeiro lar, ninguém a
enganava, ninguém a iludia, ninguém lhe escondia o preço daquele conforto.
Reena começava a considerar que talvez não fosse um preço excessivo para alguém
como ela, que não podia aspirar a muito mais. E um dia, sonhava, se aqueles
nobres se esquecessem dela, porque um dia ia envelhecer e perderia qualquer
vestígio de formas aprazíveis, talvez nesse dia ali tivesse um lar, para
sempre, naquele sossego. Naquele sossego de um túmulo.
Há muito tempo que Reena não
contemplava o seu futuro, desde que o futuro se apresentara demasiado medonho
para o contemplar. Mas agora dava por si a recordar-se, naquelas solitárias
caminhadas entre a floresta adormecida debaixo da neve, que um dia tivera
sonhos, tantos sonhos, quando era nova e inocente.
Regressava ao castelo,
depois de um daqueles passeios em liberdade, e cansada sentou-se nas ruínas da
muralha. Não tinha sonhado, jamais, que o melhor que lhe podia acontecer era
envelhecer e murchar, e dar-se por contente que lhe permitissem aquele lar
triste e silencioso, invisível no seu canto, à espera que se esquecessem da sua
existência. Lágrimas molharam-lhe o rosto, e desta vez Reena soluçou em voz
alta porque ninguém a ouviria. Era aquele o melhor futuro que podia ambicionar?
Quando tinha tido sonhos, tantos sonhos. Sonhos que não queria recordar para não
sofrer mais.
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