quinta-feira, 22 de março de 2018

Nepenthos - Capítulo VII (excerto)

Já publicado
Capítulo I - primeira parte
Capítulo II - primeira parte
Capítulo II - segunda parte
Capítulo III - primeira parte
Capítulo III - segunda parte
Capítulo IV (excerto)

 Onde a morte enchia de frutos o seu cesto ávido


Eric regressava a casa depois da visita a um nobre com quem mantinha proveitosos negócios, muito a norte do reino. Tão a norte que as altas montanhas dos seus domínios se sentiriam ofuscadas por aquelas irmãs mais poderosas, toda uma cordilheira negra e majestosa, tão bela de verão quanto terrível de inverno, mas revestida de tons vermelhos e dourados agora que coberta de outono.
(…)
Aproximava-se a bifurcação na estrada de onde se seguia para a mina de trabalhos forçados, não muito longe dali, e surpreendendo a sua escolta Eric pediu que alterassem o trajecto nessa direcção.
O desvio no caminho, íngreme e rochoso, conduzia directamente até uma cova nas montanhas onde os condenados extraíam precioso minério das férteis minas e partiam pedra para todos os cantos do império. Assim, visto de cima, aquele lugar de suplício parecia um pedaço do inferno. Devido à inclinação das ravinas raramente o sol ali pousava de inverno, mas de verão devia escaldar durante todo o dia. Guardas com chicotes certificavam-se de que os condenados faziam o seu trabalho. Os mais fortes, ou os que tinham chegado há pouco tempo, caminhavam acorrentados. Aos outros já não restava força para fugir e muito provavelmente acabariam ali a sua vida, naquele castigo derradeiro onde a morte enchia de frutos o seu cesto ávido. Mas os condenados não paravam de chegar, e as minas e a pedreira não paravam de produzir as suas riquezas. Por um que morresse, vinham logo dois para o seu lugar sem que a ração fosse duplicada. Ali terminavam a maior parte dos condenados a quem não fora sentenciada a forca. Muitos, sabia Eric, estavam inocentes. Conhecia aquele poço de tortura há vários anos, desde o tempo da guerra, e o seu maior beneficiário, o duque deVerna, senhor daqueles domínios, há período idêntico. Um homem execrável, aquele, mas poderoso, graças ao manancial daquelas jazidas, a quem pouco importava fazer justiça desde que não lhe faltassem escravos que escavassem a sua fortuna. Eric sabia disso, e desagradava-lhe, mas o nobre era também um estratégico aliado e nada lhe convinha ainda pô-lo na ordem. O tempo chegaria, e Eric seria implacável, mas por agora era preciso fechar os olhos a pormenores de menos importância.
Continuava a ser útil, aquela aliança, forjada do mútuo interesse, nos dias incertos em que o jovem soberano necessitava de mercenários e armas na mesma medida em que o velho nobre abominava o arrastar do conflito que lhe ameaçava o negócio. Ao visitar aqueles domínios, desde esse primeiro voto de lealdade, Eric comprometia-se na tácita aprovação que astutamente deVerna pretendia garantir. E que o futuro imperador teve de conceder. Também aquele era um negócio, e Eric não esperava melhor da exibição de justiça que tinha sido preparada para os seus olhos. DeVerna gostava de lhe chamar clemência, não mandando para a forca insignificantes ladrões e outros transgressores de mísero delito. Antes se devia pô-los a trabalhar, nas minas, onde eram úteis a todo o reino. O duque não disse como fazia questão de ir comprá-los, sobretudo os jovens e saudáveis, a qualquer nobreza que dispensasse de bom grado o incómodo de lidar com os criminosos. Só naquele dia, Eric assistiu enquanto dezenas eram condenados às minas. Alguns, os piores, livravam-se de sentença mais dura, mas muitos daqueles homens não mereciam tamanho castigo.
Eric nunca se esqueceu de um deles. Um jovem servo, acusado de roubar um candelabro de prata da casa dos seus senhores. O pobre rapaz jurava que era inocente, que nem sabia que destino dar a um candelabro de prata, que se fosse mesmo ladrão não fazia sentido ter-se limitado a furtar um único castiçal depois de anos de trabalho honesto. Tinha sido criado naquela casa, onde depositava todas as suas perspectivas futuras, inestimáveis, que estaria a trocar por tão desprezível lucro. Ao imperador, pelo menos, conseguiu convencer de que era um rapaz esperto e que sabia argumentar com racionalidade, mas valeu mais a palavra do filho do amo, que o acusava. Eric suspeitou que seria mais provável ter sido ele próprio a oferecer o candelabro a qualquer rapariga da aldeia no intuito de a seduzir. O infeliz servo, porém, desacreditado aos olhos do seu senhor, foi de facto condenado aos trabalhos forçados.
Eric perguntava-se se tinha sobrevivido, e indagou por ele ao capataz. Este, um antigo veterano que tinha lutado pelo exército do imperador, reconheceu-o, e respeitosamente dobrou-se numa vénia.
– Rurik, diz o meu senhor? Acho que sim, que vive. Acho até que o conheço. Se me dá licença… – o homem afastou-se para gritar algumas ordens, e depressa trouxeram à sua presença um condenado em farrapos. De barbas desgrenhadas, com os longos cabelos cobertos de poeira, quase parecia um ancião embora não pudesse ter mais de vinte e cinco anos. Eric achou-o tão magro e abatido que era de surpreender que ainda vivesse de todo. Lembrava-se dele na plenitude da mocidade, um jovem rosado a debater-se entre os guardas que o levavam para o calabouço, clamando inocência. Já nessa altura não era grandemente encorpado, mas pelo menos provava-se rijo e saudável, ou tê-lo-ia sido, durante sete anos, para resistir tanto tempo.
A pedido do imperador, o capataz deixou-os sozinhos. Fraco como estava, o condenado não era ameaça mesmo se tentasse qualquer golpe desesperado e contrário ao seu feitio.
O que de modo algum parecia ser a intenção. Rurik, o condenado, limitava-se a tapar os olhos com uma mão encardida. Até a cinzenta luminosidade daquela tarde de outono os feria, de tão habituado à escuridão das minas. Encandeado, tentava perceber quem era aquele nobre que tinha chamado por ele. Não o conhecia de lado nenhum e não lhe parecia que fosse coisa boa. Talvez acabasse mesmo enforcado por causa de um candelabro que nunca tinha visto.




Próximo excerto

 

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