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O pequeno Eric comeu tudo o
que havia para comer e adormeceu à mesa, a cabeça pousada sobre os bracinhos
cruzados, a boca rosada e aberta, os olhos fechados que nenhuma conversa
conseguiria despregar. Eric e Hildegaard viram-no adormecer e riram-se um para
o outro. Alguma vez tinham dormido assim, tão profundamente, tão inocentes? Era
difícil de acreditar.
Eric
levantou-se e tomou o seu filho nos braços. O menino deixou tombar a cabeça,
mas nem por isso acordou. Nada o acordaria agora.
– Se
quiseres, posso pedir a uma das mulheres que o leve para a cama. – ofereceu
Hildegaard, temendo que o seu primo não quisesse incomodar.
– Não! –
explicou Eric, abanando a cabeça. – Sou eu que o deito todas as noites.
Contei-te, quando a mãe dele… Bem, contei-te como ele me assustou, como
rejeitou as amas, como não aceitava comida se não fosse eu a dar-lha. – e Eric
sorriu, tentando espantar as más memórias. – Enquanto ele for pequenino, nada
me vai roubar este encantamento. Todas as noites o ponho a dormir. É o melhor
momento do meu dia. – confessou, e afastou-se, com o menino ao colo, na direcção
do corredor que dava para as escadas. – Não me demoro.
Hildegaard
ficou sozinha, e aproveitou para atiçar as brasas da grande lareira do salão.
Há muitos anos que aquela lareira não era usada, nem saberia dizer há quantos. Tinham
demorado dias a limpá-la, e à chaminé, ela e as outras mulheres e o rapaz que também
pernoitava no castelo. Tinha sido um pesadelo de limpar, mas ao olhar para
cima, certificando-se de que o fumo subia sem impedimentos, Hildegaard sorriu
de satisfação. Aquela lareira era também uma lembrança de outros tempos. A
lareira, a mobília, os pratos e os copos e os finos talheres que tinha ido
desencantar a uma arca da cozinha. E os candelabros polidos e brilhantes, e os
jarros e garrafas de raro vidro. Hildegaard não tinha pensado que tornariam a
ter uso. Nem se daria a tanto trabalho senão pelo seu primo, que não tinha
gente nem raízes. Queria mostrar-lhe o que ele merecia conhecer, o que ele
tinha perdido. Só por isso valia a pena. Depressa tudo aquilo voltaria para
arcas e armários, e panos toscos tornariam a cobrir mesa e cadeiras. Muito
possivelmente, pela última vez.
Sem
amargura, Hildegaard olhou em volta, guardando uma última memória. Talvez
houvesse tristeza no leve sorriso que lhe ergueu os cantos dos lábios, mas não ressentimento.
Já tinha sido decidido há muito tempo.
Aquela
noite, aquele Solstício, eram apenas uma vaga lembrança do que nunca mais voltaria.
O seu primo jamais saberia como tinha sido quando era pequena, quando Papá ali
estava, quando Mamã ali estava. Como se sentia segura e feliz e aquela era a noite
mais bonita do ano. Como os recordava tanto, nessa noite, àqueles que já não
estavam presentes.
Ao ouvir
os passos do seu primo, limpou uma lágrima que furtivamente lhe tinha escapado.
Eric pensaria que teria sido o fumo da chaminé. Como poderia ele saber que era
outra coisa? Eric não tinha aqueles mortos a chorar. Chorava outros, mas não
aqueles.
– E este
é o segundo melhor momento do meu dia. – Eric admitia, levantando da mesa uma
garrafa cristalina e bojuda a que tirou a tampa para cheirar o conteúdo. Um
aroma adocicado, não sabia do quê. Serviu-se, num pequeno copo de estanho, e
provou, e desta vez os olhos semicerraram-se-lhe de prazer. – Que maravilha é
esta?
– Licor
de castanha. – Hildegaard revelou, e regressou ao seu lugar a um dos cantos da
mesa, junto à lareira, onde ambos se tinham instalado para o jantar.
Sem
largar a garrafa, Eric voltou também à sua cadeira, frente à dela. Felizmente,
o menino não tinha acordado. Tinha-o deixado bem aconchegado, num dos quartos sumptuosos
que Hildegaard tinha aberto para eles no andar superior. Aquela tinha sido,
afinal, casa de príncipes e princesas, e reis e rainhas, em tempos tão longínquos
que custava a acreditar. Eric sabia que a sua prima tinha fechado todas as alas
superiores do castelo e que agora dormia num dos aposentos perto da cozinha,
com os criados, por práticas questões de poupança e menos trabalho a limpar.
Hildegaard já não se via a si própria como uma princesa, talvez nunca se
tivesse visto como tal, há tanto tempo que aquela família tinha perdido o
trono. E Hildegaard, definitivamente, não queria o trono de volta. Não queria
sequer a coroa que já por duas vezes lhe oferecera. Mas não era ainda o momento
para terem essa conversa de novo.
Tomando
outro copo, Eric encheu-o e estendeu-lho, e ambos brindaram à luz tremeluzente das
velas. Hildegaard não confessou, mas aquele era também o melhor momento do seu
dia.
–
Entretanto, fui incumbido de uma missão. – Eric declarou, algo a brincar.
– Uma
missão? – Hildegaard repetiu, divertida.
–
Deveras! Um dos meus homens anda à procura do tio. Talvez o conheças, capitão
Lars? Esteve connosco em todas as batalhas?… – Eric ainda esperou uns momentos,
enquanto Hildegaard se tentava lembrar. – Bem, não interessa agora. O pai dele
está a morrer e parece que teve um tio que desapareceu. Um homem chamado Reid.
O que eles pensam é que esse tio casou com uma mulher das Terras Verdes e que
pode ter vindo morar aqui. Foi há muito tempo. A mulher era aia da minha mãe,
ou algo assim. Conheces alguém chamado Reid, por aqui?
Hildegaard
recostou-se para trás na cadeira, pensativa, e encavalitou uma das pernas contra
o peito. Pegou no copo, bebeu outro gole, e as sobrancelhas loiras
franziram-se-lhe sobre os olhos verdes.
– Não
conheço ninguém por esse nome. Mas conheço uma mulher. – acenou afirmativamente.
– Sim, uma mulher que acompanhou a prima Elena quando ela casou com o rei.
Voltou viúva.
– Oh,
pobre capitão Lars! – Eric suspirou, imaginando já as notícias que teria a
levar-lhe. – Será possível falar com ela? Quero contar ao meu capitão o que foi
feito desse Reid.
– É
possível. – Hildegaard respondeu, mas cautelosamente, e apertou mais a perna
contra o peito. Aquele não ia ser assunto de que o seu primo gostasse. – Ela
mora no castelo da família da tua mãe. A única pessoa que lá mora, para dizer a
verdade. Se não fosse ela, aquele castelo tinha ficado abandonado quando a prima
Elena morreu. Ela era criada da família e vive lá. Podes visitá-la se quiseres.
– Pensei
que o castelo estava em ruínas, quando o vi ao longe…
– O que é
que não parece em ruínas, aqui? – Hildegaard contrapôs, com um encolher de
ombros. Do silêncio do seu primo, sério e compenetrado a olhar o copo à sua
frente, até lhe podia adivinhar os pensamentos. Eric não tinha sido amado pela
mãe, nem pelo pai, e tudo o que o lembrava deles lhe arruinava o humor. – Não
precisas de ir lá. Posso pedir à Etha que pergunte o que aconteceu. A Etha é
intrometida, mas às vezes é útil ter uma amiga intrometida.
– Não. –
Eric decidiu, levantando a cabeça. – Prometi notícias ao capitão Lars, e
gostaria de as ouvir da boca da esposa do seu tio. Podemos ir amanhã?
Com um
aceno hesitante, Hildegaard concordou, e voltou a encher os copos. Ninguém
podia dizer que o seu primo não era corajoso. No lugar dele, de tudo o que
sabia da infância infeliz que nenhuma criança teria merecido, não visitaria
aquele castelo. Talvez nem visitasse aquelas terras, talvez nem visitasse
aquela prima. Durante muitos anos, tinha sido exactamente o que se passara.
– Porque
é que vieste, Eric? – perguntou, sem rodeios. – Porque é que quiseste aqui vir,
onde vais ouvir coisas que te causam más memórias, coisas que te enraivecem…
– É isso
que pensas? Que vou permitir que o passado se interponha entre mim e o futuro?
As más memórias não estão aqui, prima. És tu que estás aqui. E sabes porque
vim.
Então
era aquele, o momento, e Eric fitava-lhe os olhos verdes que Hildegaard
preferia desviar dos dele.
– Vim
por ti. – Eric continuou, determinado. – Vim porque o meu tempo esgota-se.
Tenho de escolher uma esposa. As famílias pretendentes sufocam-me de convites.
Não posso fugir-lhes para sempre. – e pegando na mão da sua prima, insistiu,
talvez pela última vez: – Porque não? Esquece o trono, esquece a coroa, casa
comigo porque nos amamos. Não podes negar que nos amamos! E não compreendo,
porque é que hei-de casar com uma estranha quando te encontrei a ti? Alguém que
eu amo, alguém que me ama, alguém que ama o meu filho, uma princesa! E linda, e
gentil, cheia de qualidades que admiro e respeito. Alguém que me compreende. Diz-me,
que louco seria eu se deixasse escapar esta felicidade?… Porque não,
Hildegaard, que nem queres considerar o futuro que podemos ter os dois? Tantos
nobres antes de nós foram forçados a aceitar casamentos sem amor. Como podemos
nós desprezar esta sorte de nos termos encontrado?
–
Sorte?! – Hildegaard contestou, e finalmente enfrentou-lhe o olhar. – Devias
ouvir-te a ti próprio! A Igreja vai crucificar-nos.
– A
Igreja concedeu-me a autorização, por escrito. Como te prometi. O nosso
parentesco não é impeditivo. E quanto ao resto do reino, ninguém achará
estranho. És uma aliada, uma princesa de uma casa real…
– Oh
Eric!… – Hildegaard sentou-se direita na cadeira, e abanou a cabeça. – Uma
princesa arruinada, de quem já ninguém se lembra. Excepto o que dizem de nós lá
fora. Excepto o que tu gostas de ignorar.
– O
mundo lá fora mudou. As pessoas já não são tão ignorantes e supersticiosas que
acreditem em bruxaria. Já não vivem no medo. Agora têm mais com que se entreter.
Graças a mim, graças a ti, graças aos nossos aliados que puseram um fim à
guerra, e agora o império prospera e enriquece…
– O
mundo não mudou! – Hildegaard interrompeu, e no seu tom Eric percebeu que a
conversa chegava ao fim. – Estás a ser um tolo. O melhor conselho que te posso dar
é que cases com uma inimiga. É assim que se fazem alianças. Pessoas como nós
não casam por amor. E eu, primo, não tenciono casar-me de todo.
Hildegaard
levantou-se e terminou o resto do licor. Era o fim da conversa, e Eric quase se
sentia tentado a enterrar o rosto desanimado nas mãos. Mas havia algo de diferente,
desta vez. Hildegaard não tinha dito não, não tinha rejeitado o assunto tão
depressa como das outras vezes. Não era o bastante para ter esperança, mas não era
o bastante para a perder. Ainda tinha um dia. Não perderia a esperança antes de
abandonar aquele castelo.
– Vim
por ti. – concluiu, por agora. – Virei sempre por ti, porque te encontrei. Já desperdiçámos
tanto tempo em equívocos, em desconfianças sem sentido. Não te vou dizer que estou
aqui porque somos família. Nem sei o que isso é. Estou aqui porque somos
amigos. Se te basta, bastar-me-á também.
À mesa,
Hildegaard abria outra garrafa, nem suave nem adocicada. O melhor momento do
seu dia. Em silêncio, encheu outro copo da essência líquida e translúcida, ardente,
que tomou de um só trago. Eric levantou-se atrás dela, fingindo a perfeita
desculpa naquela garrafa recém-aberta.
–
Lamento. Não te queria aborrecer. – tentou fazer-se perdoar. Hildegaard não lhe
parecia aborrecida, nem sequer irritada. Parecia triste, os olhos verdes mais
escuros agora que se afastara do fulgor da lareira, o loiro do seu cabelo mais
apagado na sombra que lhe velava o rosto. Mas bela. Como ninguém a imaginaria
nas suas roupas de homem, na sua armadura de guerreira, nos seus trajes
enlameados de caçadora. Hildegaard nada tinha de arrapazada, naquele gesto
fluido com que enchia outro copo e lho estendia, delicadamente, docemente, como
só uma mulher era capaz. O cinto largo que lhe cingia o vestido, de duro couro
afivelado, nada lhe roubava à figura graciosa. Eric perguntou-se por que
milagre era a sua prima ainda solteira. Mas a conversa tinha chegado ao fim, e
aceitou a aguardente que engoliu sem saborear. – Obrigado por me receberes. – agradeceu,
toda a sua sinceridade naquelas palavras tão sentidas. – Se não estivesse aqui
não me tinha livrado dos convites, todos aqueles convites gananciosos dos que
querem o imperador à sua mesa. Não fiz outra coisa nos últimos dez anos senão
distribuir-me por entre eles. Por uma vez na vida, que esta festa seja para
mim. Para nós.
– Não me
aborreceste. Estou contente por teres vindo. – Hildegaard garantiu, e voltou-se
para o olhar nos olhos, tentando mostrar um sorriso menos triste. – Espero que
gostes do nosso Solstício. Começa amanhã, ao anoitecer.
Agora mais
à vontade, Hildegaard preparava-se para lhe voltar a encher o copo vazio, mas
Eric ergueu a mão.
– Estou
mais cansado do que pensava. – admitiu, encolhendo os ombros. – A viagem foi
longa, e fria. Deixa-me ir dormir antes que adormeça à mesa como o pequenino.
Amanhã, depois de repousar, terei apetite para comer esta mesa inteira!
Hildegaard
riu-se, e Eric riu também, mas não era um riso de vontade.
– Boa
noite, prima. – o imperador despediu-se, e beijou-a na maçã do rosto, ao de
leve, temendo o resultado de se aproximar mais. – Dorme bem.
Cabisbaixo,
quase a acusar o desapontamento que tanto queria ocultar, Eric encaminhou-se
para a larga porta em arco que abria para os corredores. Hildegaard olhou-o
afastar-se e apertou na mão o copo vazio.
– Tens
família. – lembrou-o. – Tens-me a mim.
Eric
voltou-se para trás e as luzes da sala iluminaram-lhe os olhos e o sorriso. Era
tão fácil para ela dizê-lo. Hildegaard não tinha sido órfã de pais vivos. Nem
saberia o significado de tais palavras. Talvez um dia ela o convencesse de que
tinha família, mas Eric sentia-se órfão ainda. Com um desmedido esforço de
vontade, absteve-se de levar consigo o odre de aguardente mais à ponta da mesa.
Continua...
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